Sempre que se busca dar cidadania aos mais pobres, o que é o caso da PEC da Defensoria Pública, há oposição de certos políticos
UM DOS direitos mais básicos da cidadania é o acesso à Justiça. É um direito fundamental, alçado à condição de cláusula pétrea pelo constituinte de 1988. A própria Constituição traz os instrumentos garantidores do seu exercício, como a impossibilidade de excluir da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, a proteção da ampla defesa e do contraditório nos processos em geral e o dever estatal de prover a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
No último dia 5, o deputado federal José Carlos Aleluia (DEM-BA) publicou artigo neste espaço ("Um poder inconveniente") atacando proposta de emenda constitucional de minha autoria que tem por objetivo o fortalecimento de uma instituição criada com a Constituição de 1988 e destinada a assegurar uma Justiça mais democrática, acessível aos cidadãos que não podem pagar um advogado.
Alega o deputado que da autonomia da Defensoria Pública nasceria um poder todo-poderoso. Ele questiona também os custos para a implementação do modelo previsto na PEC.
A primeira colocação é absurda, pois o que se pretende é dar garantias ao defensor público para que ele demande, inclusive contra o Estado, sem sofrer perseguições.
A segunda questão, por atentatória a um preceito tão fundamental quanto a saúde e a educação -as quais ele cita-, não pode passar como verdade.
Tenho certeza de que a implantação de uma Defensoria Pública autônoma e independente não vai quebrar a República, mas se dará no sentido de revesti-la de capilaridade, assegurando a difusão da cidadania.
Atualmente, segundo o Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, publicado em 2006 pelo Ministério da Justiça, em média, menos de 40% das comarcas do país contam com o atendimento da população carente por defensores públicos. Isso significa que, na maior parte das cidades brasileiras, quem não tem condições financeiras para contratar um advogado está abandonado à própria sorte.
Atualmente, a expansão dos serviços da instituição depende exclusivamente do chefe do Poder Executivo, única autoridade que pode submeter ao crivo do Poder Legislativo medidas voltadas à necessária ampliação da malha de cobertura do atendimento jurídico aos carentes.
Quando defende o cidadão carente, a Defensoria Pública faz aquilo que o Ministério Público faz de forma difusa. Dar-lhe capilaridade e autonomia não significa criar um novo poder, mas fortalecer o sistema de freios e contrapesos que caracteriza a democracia e que compõe o necessário equilíbrio entre as funções estatais.
Ao contrário do que aduz Aleluia em seu artigo, a PEC 487 não confere uma hipertrofia de atribuições a essa instituição, mas busca sanar a hipotrofia de instrumentos voltados exclusivamente à população carente, numa tentativa de superar, pelo menos no que diz respeito ao acesso à Justiça, o fosso que separa pobres e ricos diante da estátua vendada da deusa Têmis.
Sempre que se busca dar cidadania aos brasileiros mais pobres, o que é o caso da PEC da Defensoria Pública, encontra-se a oposição daqueles vinculados a partidos colocados mais à direita no espectro político e também ligados ao atual governo.
Não é difícil entender a motivação de quem espera que a população carente fique à mercê da vontade dos políticos quando necessita dos serviços do aparelho do Estado. Assim, na condição de pedintes, os mais pobres terão de estar sempre agradecidos aos "benfeitores" que se interpuserem entre o direito que lhes está garantido na Carta Magna e o atendimento das suas necessidades. É uma forma antiga e repugnante de produzir votos, a qual deve merecer de todos nós absoluta condenação.
A Defensoria Pública deve estar estruturada em todas as unidades da Federação -uma medida necessária à concretização do amplo acesso à Justiça. A alteração pretendida pela proposta de emenda constitucional atende aos excluídos do serviço judiciário, condição iníqua que deve envergonhar cada brasileiro deste país.
O fato de milhões de brasileiros estarem sem cidadania não beneficia senão os políticos espertalhões que querem substituí-la por bolsas, que nada mais são que uma espécie de esmola. Negar cidadania é golpear a democracia.
A célebre frase de Ovídio "cura pauperibus clausa est" (o tribunal está fechado para os pobres) é uma lamentável realidade. É preciso acabar com a vergonhosa noção de que a Justiça é um valor acessível só para os que podem pagar, o que poderá ser modificado com o fortalecimento da Defensoria Pública.
Texto de ROBERTO FREIRE na Folha de São Paulo de 08/11/07
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ROBERTO JOÃO PEREIRA FREIRE, 65, advogado, é presidente nacional do PPS. Foi deputado federal e senador da República pelo PPS-PE.
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