Além dos antecedentes da crise, fica evidente a balbúrdia causada pela incapacidade de setores do governo de agir
ALÉM DE UMA equivocada pressão de Lula sobre a Petrobras, daí resultando a causa mais imediata da súbita falta de gás, esta crise complicada e ameaçadora tem antecedentes que valem como uma radiografia do governo.
No antecedente mais esquecido, Lula tapou com gás um rombo aberto nas suas relações com Néstor Kirchner e, muito pior, entre Brasil e Argentina. Quando o governo argentino decidiu repelir as exigências estrangulantes do acordo imposto ao seu país pelo FMI, contava com algum apoio pessoal de Lula, que tanto criticara o Fundo e os acordos, e do governo brasileiro. Em vez do esperado, o ministro Lavagna, da Economia, de repente passou a receber telefonemas de Antonio Palacci, ainda o poderoso, com a insistente sugestão de que a Argentina se curvasse ao FMI. A capitulação dos argentinos convinha à política pusilânime do governo brasileiro, que já se preparava para despender US$ 15 bilhões em pagamentos antecipados ao FMI.
Kirchner ficou indignado com Lula. Enfrentou sozinho o FMI e ganhou o confronto (hoje é reconhecido, inclusive no Fundo, que essa atitude foi fundamental para a extraordinária recuperação econômica da Argentina, com crescimento muito maior que o brasileiro). E não deixou de mostrar o seu desprezo pelo governo Lula, abandonando reuniões presidenciais, ausentando-se de outras e deixando em suspenso acordos previstos.
A retomada do crescimento e de melhores condições sociais levou à falta crítica de gás na Argentina, com imediata agitação política e urbana. Kirchner quis aumentar a compra de gás da Bolívia, mas os bolivianos também passavam por aumento de consumo. A solução estava em parte da quota brasileira no gás da Bolívia. Lula pegou logo a oportunidade de remendar o rombo aberto pelo servilismo de Palocci, e fez a liberação bem ostentatória da quota. Estavam reabertas as relações com Kirchner, mas o que deixou de ser rombo lá é parte, agora, do rombo de gás aqui.
A combinação de algumas hipóteses consideráveis e sua exploração por muitos interesses privados gerou, desde o ano passado, intensa campanha sobre a ameaça de novos apagões de energia elétrica no Brasil. Transposta para a política, já como acusações de inação administrativa, a campanha levou Lula e o governo à idéia fixa de não repetir do apagão, lembrando-se de Fernando Henrique. E tome de discurso sobre biocombustível, as mentiras da auto-suficiência de petróleo, a embaraçada entrega do rio Madeira para duas hidrelétricas privadas, a reabertura da proposta de Angra-3. E, não menos brilhante, a decisão recente de Lula de forçar a Petrobras à cessão de gás para operação das termelétricas.
As advertências da estatal, sobre a falta que haveria para indústrias, veículos e, talvez, até para uso doméstico, de nada serviram (a repórter Janaina Lage documentou as advertências, na Folha de sábado passado). A crise veio logo.
Como complemento dos antecedentes, fica a evidência da balbúrdia provocada pela incapacidade dos setores apropriados do governo, tão sujeitos ao jogo político, de se entenderem e agirem. Senão para dar uma política energética ao país, ao menos para dá-la ao governo mesmo.
Texto de Jânio de Freitas na Folha de São Paulo de 06/11/2007
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