"Aqui na Mangueira, a gente beija um inimigo como se ele fosse um irmão", promete uma antiga marchinha do carnaval carioca, numa homenagem carinhosa a uma célebre favela, situada ao norte do Rio, e à sua prestigiosa escola de samba, a decana de todas as agremiações. Ao fundar a escola, em 1928, o compositor desta música, o lendário Cartola, havia também escolhido as cores do seu emblema: o verde para a esperança, e a cor-de-rosa para o amor.
Atualmente, a Mangueira não incentiva mais ninguém a expressar tão intenso lirismo. O seu estandarte e a sua glória perderam parte do seu brilho. Às vésperas do carnaval, com a sua febre que mais uma vez vai tomar conta da cidade, do sábado gordo de antes da quaresma até a quarta-feira de Cinzas (de 2 a 6 de fevereiro), a mais amada das escolas de samba do Rio está ocupando as manchetes das piores de todas as páginas dos jornais, aquelas dedicadas ao tráfico de drogas.
Policiais observam fortaleza construída no morro da Mangueira, Rio de Janeiro
O escândalo estourou em 8 de janeiro. Naquele dia, cerca de 300 policiais participaram da "operação carnaval", uma blitz no morro da Mangueira. Trocas de tiros, operações de busca, prisões. No decorrer da operação, a polícia descobriu uma tonelada de maconha pronta para a venda e papelotes de cocaína cuja embalagem celebrava "o melhor crack do mundo". Os policiais também fizeram outra descoberta, mais macabra, alguns crânios ao lado de um incinerador de cadáveres, apelidado de "forno de microondas".
No alto do morro da Mangueira, eles descobriram ainda uma muralha de concreto armado - de 15 m de comprimento para 3 m de altura - na qual foram construídas pequenas aberturas. Este muro oferecia aos traficantes posições de tiros impecáveis contra os seus inimigos, quer eles trajem roupas civis, quer eles estejam de uniforme. Ele seria destruído por meio de uma escavadeira, sob a proteção de um veículo blindado e de um helicóptero.
Três semanas mais tarde, o chefão do morro segue foragido. Será que se esconde no coração da favela onde nasceu? Aos 44 anos, Francisco Paulo Testas Monteiro, também conhecido como "Tuchinha", é um "veterano de guerra" que perdeu algumas batalhas, mas nunca pendurou as chuteiras. Ele já reinava sobre a Mangueira nos anos 1980-1990. Condenado a 40 anos de prisão por homicídio e tráfico, e libertado 17 anos mais tarde (em 2006), ele garantia ter "criado juízo" após ter descoberto uma nova vocação: o samba. A escola da Mangueira o havia até mesmo promovido, em 2007, como o seu compositor oficial. Mas a sua conversão musical não passava de uma cobertura conveniente para que ele pudesse prosseguir seus negócios criminosos.
Segundo revelaram as escutas telefônicas que foram publicadas na imprensa, Tuchinha utilizava uma passagem secreta para transitar livremente entre o "camarim" da escola de samba e o seu esconderijo dotado de ar condicionado, de onde ele organizava os seus negócios e vigiava vinte pontos de venda, todos recenseados pela polícia. O seu comércio lhe rendia cerca de US$ 500.000 (cerca de R$ 870.000) por semana, dos quais 60% durante os fins de semana, quando os "sambistas" ensaiam o espetáculo que eles irão apresentar no carnaval.
Este caso como um todo semeou a consternação nos meios políticos e artísticos. Comprovam isso o meio-silêncio constrangido de César Maia, o prefeito do Rio, ou de Gilberto Gil, o cantor que se tornou o ministro da Cultura. Pela primeira vez, e por efeito da repercussão na imprensa, os vínculos incestuosos entre as drogas e o samba ficaram escancarados de modo a todos poderem vê-lo nos seus menores detalhes, sem nenhum desmentido possível. Três repórteres do diário de maior tiragem do Rio, "O Globo", andaram ligando para pessoas durante uma semana, em busca de comentários. Tudo o que eles conseguiram foi uma única reação, a de um poeta que lhes disse: "O samba nada tem a ver com isso".
Mas o impacto simbólico do escândalo se deve, sobretudo, à identidade da Mangueira, a mais popular das escolas, 18 vezes campeã do carnaval. Uma jóia do patrimônio artístico nacional, ela é também aquela que se vangloria do seu programa social em favor dos excluídos, aquela que é citada como modelo, pelos seus projetos educativos, esportivos, médicos, aquela que costumam mostrar para os hóspedes mais prestigiosos, de Mandela a Chávez, passando por Bill Clinton, ou ainda, durante este Ano Novo, para os atores Vincent Cassel e Monica Bellucci...
Ao dar guarita para um chefão do crime organizado, a Mangueira, que todos gostariam de ver como uma instituição acima de qualquer suspeita, cometeu um pecado. Alguns comentaristas enxergam neste caso um insulto à memória de gerações de artistas, e até mesmo "um crime cultural". Pode até ser. Mas não deixa de haver certa hipocrisia nas reações indignadas dos "cidadãos do asfalto" que têm a sorte de não viverem nos morros depauperados.
Isso porque, desde que favela rima com samba, desde que as escolas de samba existem, estas vêm flertando com o crime. Para sobreviverem e para brilharem num carnaval sempre mais repleto de faustos e suntuoso. Os seus benfeitores tradicionais são os banqueiros do jogo do bicho, "le jeu de la bête", a loteria clandestina cujos 25 grupos de números representam animais.
O bicheiro financia o samba, e ganha em troca uma clientela dócil e de uma respeitabilidade de fachada. O seu feudo corresponde ao território da escola. Os bicheiros prosperaram lá onde o Estado estava falindo. À frente de um poder paralelo, eles permitem que a escola ofereça aos seus membros um emprego estável, ou ainda a esperança de uma ascensão social. Com o fortalecimento do narcotráfico, alguns protetores se reconverteram ou tiveram que ceder o lugar para padrinhos mais ávidos e mais violentos.
Para diminuir a dominação do crime organizado sobre as escolas de samba, as autoridades andaram aumentando a sua ajuda financeira. O governo federal, o Estado do Rio e a prefeitura liberaram neste ano verbas de cerca de US$ 10 milhões (cerca de R$ 17,5 milhões) para doze grandes escolas. Este sistema de subvenções permanece imperfeito, uma vez que boa parte deste dinheiro é alocada para a Liesa, a toda poderosa liga das escolas, que o redistribui sem ter de prestar contas da sua utilização.
Certas escolas de samba são apadrinhadas diretamente por um Estado da Federação, e até mesmo por um país estrangeiro. Este é o caso da Mangueira, que se associou em 2008 com o Estado de Pernambuco, em troca de uma quantia importante. Vários dos seus carros alegóricos irão celebrar os encantos desta região do Nordeste. Em 2006, a companhia petrolífera venezuelana havia outorgado US$ 1,5 milhão (cerca de R$ 2,6 milhões) para as escolas, em nome da solidariedade entre os povos.
Este ano, vários patrocinadores privados, entre os quais a Nestlé e o HSBC, estão dando apoio às escolas, entre as quais a Unidos da Vila Isabel, que escolheu como tema "os trabalhadores do Brasil". As outras fontes de dinheiro são mais intimamente vinculadas ao carnaval: venda dos ingressos no Sambódromo, a vasta tribuna construída por Oscar Niemeyer, na frente da qual desfilam as escolas de samba; direitos de transmissão televisiva; comercialização dos CDs e DVDs.
Os vínculos entre as drogas e o samba são apenas um dos sintomas do narcotráfico, um mal do qual os habitantes das favelas são geralmente as primeiras e principais vítimas. Em sua antiga marchinha, Cartola constatava: "os habitantes da Mangueira são tão pobres que eles só têm o sol como teto". Será que ele cantaria algum enredo muito diferente hoje?
Jean-Pierre Langellier
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Do Le Monde e UOL 05/02/2008
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