Graduado ocupa emprego de nível médio
Um em cada dez trabalhadores urbanos com diploma universitário estava em áreas com baixo perfil de escolaridade em 2006
Expansão do ensino superior sem o correspondente aumento no mercado de trabalho ajuda a explicar procura por tais vagas
Com a expansão do ensino superior sem o crescimento correspondente no mercado de trabalho, profissionais com graduação disputam empregos de nível médio e até fundamental. O fenômeno é visível principalmente em concursos públicos, mas aparece na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), do IBGE.
Em 2006, um em cada dez trabalhadores urbanos com diploma universitário estava ocupado em áreas com baixo perfil de escolaridade. São quase 700 mil graduados em ocupações como vendedor em loja, recepcionista ou operador de telemarketing.
Segundo o Ministério da Educação, 737 mil alunos se formaram em 2006 na educação superior, o triplo de 1995 (246 mil). A falta de oportunidades compatíveis com sua qualificação para uma parcela desses formados faz com que, hoje, um em cada 20 carteiros tenha superior completo, segundo os Correios.
Na Guarda Municipal do Rio de Janeiro, 480 dos 5.563 guardas têm diploma universitário e 32 têm pós-graduação.
Na Polícia Militar de São Paulo, há 3.935 soldados, cabos e sargentos com nível superior e 12 com mestrado ou doutorado. O efetivo total da corporação é de 93 mil.
Até na varredura de ruas se acha graduados. Na Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro), entre os 12.377 garis, há 37 com nível superior.
O que surpreende no índice de carteiros e de guardas municipais cariocas com graduação é que ambas as profissões não possibilitam ascensão por troca de cargo após o concurso e não têm estabilidade -os funcionários são celetistas.
Um advogado aprovado em concurso para carteiro terá que se submeter a outro concurso público para ser admitido na área jurídica, informa a diretora de Gestão de Pessoas da estatal, Maria de Lourdes Rosalem.
O salário inicial do carteiro é de R$ 620, e o teto, de R$ 1.306,08, mais gratificações e benefícios indiretos, salvo se ocupar funções de chefia.
O mesmo se dá na Guarda Municipal do Rio, em que o salário inicial, fora benefícios, é de R$ 812, mas muitos desconhecem que não há garantia de estabilidade quando se inscrevem no concurso, diz o tenente-coronel Carlos Moraes Antunes, comandante da guarda.
Na sua avaliação, no caso da Guarda Municipal, a invasão de graduados mais prejudica do que favorece a corporação porque eles fazem o concurso por falta de oferta de emprego em sua área, e na esperança de migrarem para funções internas.
""Seria ótimo se tivéssemos guardas de nível universitário nas ruas, mas eles não querem esse trabalho e tiram o lugar dos que têm vocação", diz.
Super oferta
Há cinco anos, os Correios exigiam apenas ensino fundamental para carteiro. O requisito aumentou para o nível médio diante da crescente escolaridade dos candidatos.
""Cresceu a oferta de candidatos com formação universitária, mas o diploma não significa boa qualificação. Abriram faculdades em todas as esquinas, e o ensino empobreceu", afirma Rosalem.
Em carreiras mais atrativas, o ingresso em funções de nível médio é até maior. O diretor de gestão de pessoas do Banco do Brasil, Juraci Masiero, diz que metade dos ingressantes em concurso tem nível superior.
"Nos primeiros anos, as atividades são relativamente simples e não necessitam de nível superior. Mas incentivamos todos que entram com nível médio a fazer um curso. Isso aumenta suas chances de assumir postos mais altos."
Segundo ele, em algumas regiões o banco já poderia aumentar a exigência: "É uma hipótese em discussão. Em São Paulo, não teríamos problema, mas o mesmo não ocorreria em Estados onde há menos mão-de-obra com nível superior."
A Cobra Tecnologia, estatal vinculada ao Banco do Brasil, da área de informática, contratou 90 pessoas por concurso público no início do ano passado para um salário inicial de R$ 550 brutos e 32% dos aprovados tinham formação superior. Segundo o presidente da estatal, Jorge Wilson Alves, cerca de 20 já deixaram o emprego, por terem sido aprovados em concursos mais atraentes.
Na Polícia Rodoviária Federal, o salário de R$ 5.085 é o principal atrativo. No último concurso, com exigência de nível médio, 86% dos selecionados tinham formação universitária. No próximo, a exigência aumentará para nível superior.
Renda de quem tem diploma é 172% maior
Apesar de uma parte dos trabalhadores com nível superior estar hoje disputando vagas com quem tem nível médio, ter um diploma no Brasil continua fazendo muita diferença.
Em 2006, a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, mostrava que os trabalhadores com nível superior tinham, em média, rendimentos 172% maiores que os de nível médio e a menor taxa de desemprego entre todos os grupos: 3,8%.
A Pnad mostra também que, mesmo quando estão em profissões de menor exigência de qualificação, os rendimentos dos trabalhadores com nível superior tendem a ser maiores do que os que não completaram uma universidade.
No caso de vendedores de lojas ou mercados, por exemplo, apenas 3% têm nível superior. O rendimento médio desse grupo, no entanto, é quase o dobro (92% maior) do que o verificado entre os que têm nível médio apenas.
O mesmo acontece com recepcionistas (7% com nível superior), operadores de telemarketing (9%) ou trabalhadores nos serviços de higiene e embelezamento (2%).
O gerente da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, Cimar Azeredo Pereira, afirma que é comum aparecer na amostra da pesquisa trabalhadores com nível superior em áreas com baixa qualificação.
"Mas são uma minoria e, mesmo deslocados profissionalmente em relação ao curso que fizeram, costumam ter melhor inserção no mercado que quem não tem nível superior."
O economista Cláudio Dedecca, da Unicamp, lembra que, quando uma pesquisa como a Pnad mostra que 3% dos vendedores de lojas ou mercados têm nível superior, o dado pode esconder perfis bem distintos.
"Nesse grupo pode haver um vendedor que ganha um salário mínimo fixo e outro em loja mais sofisticada que recebe comissão pelas vendas, com rendimentos bem mais elevados."
Para especialistas ouvidos pela Folha, a melhoria da qualificação da mão-de-obra é sempre desejável em um país onde poucos têm nível superior. Mas explicam que, quando isso acontece e o país não cresce, há um efeito em cascata.
"É um movimento antropofágico. Se o número de vagas é menor do que o de pessoas que precisam trabalhar, ocorre uma competição pelos postos de trabalho onde quem tem mais escolaridade ocupa espaços de trabalhadores de nível médio", diz Dedecca.
O caminho de muitos é o setor público. ""Virou uma forma de garantir a sustentabilidade enquanto não se consegue emprego melhor", diz Waldemar Melo, vice-presidente do Instituto de Planejamento e Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico e Científico, que faz concursos para órgãos públicos.
Ao mesmo tempo em que profissionais de nível superior não acham vagas em suas áreas de formação, um estudo do Ipea divulgado em 2007 mostrou que não há mão-de-obra para 123 mil vagas qualificadas.
Isso ocorre porque as áreas de formação desses profissionais mais qualificados nem sempre coincidem com as áreas em que há mais carência.
Advogado acorda às 4h para entregar cartas e estuda para virar juiz
O advogado Rodrigo Braga Soares, 29, acorda às 4h para encarar o emprego de carteiro, com um objetivo fixo em mente: ser juiz antes de chegar aos 40 anos. Ele investe 60% do salário, de cerca de R$ 600, em cursos preparatórios para concurso no Tribunal de Justiça do Rio.
Sua rotina no emprego começa às 8h da manhã. De casa ao trabalho, são mais de duas horas, de ônibus. Caminha cerca de 10 km por dia, entregando cartas. Terminado o expediente, toma banho, no próprio local de trabalho, e vai estudar.
""Tento seguir minha meta. Estudarei até passar em um concurso público na área jurídica. Em nenhum momento penso em disputar o mercado de trabalho, porque não me vejo com chances. É muito concorrido", afirma.
Ele diz que o emprego de carteiro dá para custear os estudos e os gastos pessoais, mas que não cogita ficar na função em definitivo. "Não é o que tracei para mim, mas muitos colegas, também formados, se acomodam."
Waldy Pereira Barros Jr., 41, é formado em pedagogia e deu aulas em escola municipal antes de fazer o concurso para Guarda Municipal do Rio, em 2004. Ele é guarda de trânsito e dá aulas particulares, nos dias de folga, no bairro onde mora, Vila Valqueire (zona oeste do Rio).
"Planejo fazer outro concurso público, mas, enquanto estiver aqui, é o melhor lugar para trabalhar." Ele disse que prestou concurso para guarda municipal para estimular um irmão, que estava em situação difícil e também foi aprovado.
Roberta Abreu de Souza, 26, é uma das 205 mil vendedoras em lojas que, segundo a Pnad, têm superior completo. Ela é formada em pedagogia, já fez psicologia e hoje estuda jornalismo. "Fiz pedagogia só porque era um curso mais fácil e rápido. Nunca trabalhei na profissão e desde 2004 sou vendedora. Meu sonho, no entanto, sempre foi ser jornalista."
Ela hoje trabalha na loja da Oi no shopping Via Parque, na Barra (zona oeste do Rio).
O desejo de Vinícius da Fonseca, 32, formado em matemática há quatro anos, é que sua situação de gari da Comlurb também seja temporária. "Quando entrei, tinha somente o nível médio. Me formei e estou me preparando para o próximo concurso do município. Espero ganhar mais como professor do que como gari."
Texto de ELVIRA LOBATO e ANTÔNIO GOIS na Folha de São Paulo de 04/02/08
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