quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Pedofilia: muito barulho e pouca prisão

A Internet multiplicou as oportunidades dos pedófilos. Mas só 30 dos mil detidos na Espanha por posse e tráfico de pornografia infantil nos últimos quatro anos estão presos. O resto anda solto



Mil pedófilos foram detidos na Espanha nos últimos quatro anos. Só 30 estão na prisão. É um número muito elevado com resultado frustrante, porque não se compreende que esse tipo de pessoas circulem livremente pelas ruas perto de nossos filhos. O fenômeno da pornografia infantil e suas conseqüências não despertam alarme social porque não há uma compreensão exata do problema. A crença de que o pedófilo é um personagem obscuro, marginal, que sofre seu transtorno sexual na solidão, não é exata. O pedófilo é uma pessoa integrada à sociedade, é pai de família e tem um trabalho qualificado. Quando age, conhece suas vítimas. É cada vez mais jovem e não está nem se sente só.

O avanço da pornografia infantil (e com ela da pedofilia) tem todas as características de uma praga, que é a percepção que tem tanto a polícia como as organizações que a combatem: a mera reforma do código penal espanhol em 2003 (considerada insuficiente) e o reforço das equipes policiais que combatem esse delito propiciaram que as estatísticas disparassem e surgisse a verdadeira dimensão do problema. Em 2003 foram detidas 84 pessoas, em 2007 o número começa a ser significativo: 677. Nos últimos quatro anos os detidos somam 974. Com as últimas detenções em janeiro deste ano são mais de mil.

A epidemia pode chegar às nossas casas. Que segurança você tem de que seu filho ou filha não esteja em contato com um pedófilo através da Internet? Nenhuma. Talvez se observar que a criança está mudando de humor, dorme mal, perde o apetite ou chora por qualquer coisa deva lhe perguntar se se relaciona com amigos pela Internet e se os conhece. Uma menina asturiana de 13 anos mostrava esse sintomas, finalmente agravados por uma tentativa de suicídio. A origem de seus males estava no computador. Um adulto do Brasil a estava assediando.

Tudo tinha começado de forma inocente, como começam essas coisas, porque entre as características gerais dos 12 perfis do pedófilo está a de ser homens integrados na sociedade, com família, com estudos, conscientes do que fazem e, em alguns casos, com uma assustadora capacidade de sedução. Aquele adulto do Brasil se apresentou no bate-papo como um rapaz de 13 anos, simpático e agradável. Teve paciência para esperar seu momento, conquistou a confiança da garota, conseguiu uma foto dela, utilizou um programa para captar sua senha e sua lista de contatos, entre eles os endereços de correio de seus amigos e colegas de classe. E a partir de então começou o assédio. O fenômeno é conhecido como "grooming" [preparação]. Sob a ameaça de que contaria seus segredos a seus amigos, lhe pediu uma foto provocadora. Os pedidos foram aumentando e a chantagem também.

O risco é palpável porque o acesso à pornografia infantil não é complicado. Não exige conhecimentos especiais de navegação pela Internet. É tão simples quanto abrir o navegador Google e pesquisar. As próprias páginas de sexo tradicional conduzem inevitavelmente a esses lugares tenebrosos, onde se começa por meninos em pose provocativa imitando as imagens dos adultos. O passo seguinte são os nus e logo começa a vir tudo o mais: o sexo explícito. Umas páginas levam a outras, os links viajam para fóruns e comunidades onde o nível é cada vez mais elevado, as crianças são menores e as imagens mais duras. Nessas estações aparece a troca de fotos, o contato com outros pedófilos, a exigência de imagens exclusivas, o lugar final em que um menino de sete anos torna-se "velho" para o apetite dessa gente e se busca mais, mais dureza em mais tenra idade.

Há fóruns de pedófilos que se autoclassificam como legais ou limpos. Circunstância curiosa. Nesses lugares, os internautas dispensam as fotos aberrantes e adotam um ar reivindicativo. São acompanhados de apelidos delicados e fotos de meninos angelicais para justificar-se, para se dar conselhos uns aos outros de como evitar a vigilância na rede, para se defender dos ataques dos que não entendem o "amor dos mais velhos pelos pequenos". Sentem-se incompreendidos, elogiam a relação consentida com menores na antiga Grécia, comentam suas fantasias, expressam seus sentimentos para com meninos que conhecem, esse vizinho, esse aluno tão encantador, e até criticam seus pais (no fórum, naturalmente) por não estarem preparados para admitir o muito que ele "pode ensinar a seu filho".

Não se qualificam como pedófilos. Hoje são Boy Lovers. Ou, resumindo, BL, como se fosse uma imagem de marca. Até nesse ponto se sentem fortes.

Depois há os outros fóruns, os da verdade nua, sem dissimulação, os do mais puro intercâmbio, os mais selvagens no uso da linguagem, um lugar onde as imagens e as palavras são de arrepiar.

Por exemplo, os risos de alguns.

"He, he, he, esse material não serve, é velho, são maiores. Quer de 3 anos?"

David é um ciber-sentinela. Toda noite, depois de jantar, coloca-se diante de seu computador e inicia uma busca de páginas e fóruns. É uma disciplina que dura pelo menos duas horas. É um dos 300 voluntários ativos que colaboram com Protegeles.com, uma organização espanhola financiada pela Comissão Européia, dedicada a combater a pornografia infantil e o abuso de menores. Há 25 organizações na Europa e meia dúzia na Espanha que se interessam por esse assunto. A utilização desse tipo de voluntários tem sua importância: são aliados muito valorizados pelas forças de segurança na hora de descobrir esse tipo de páginas e perseguir os que se ocultam atrás delas. Das 1.500 denúncias anuais que chegam a essa associação, de 12% a 15% acabam sendo efetivas e permitem que a polícia rastreie informação útil. Os ciber-sentinelas, que fazem às vezes de investigadores privados, têm uma vantagem sobre a polícia: podem atuar como infiltrados.

A polícia não pode fazer isso. Não pode trocar arquivos de imagens porque estaria cometendo um delito, nem pode atuar como um hacker, nesse caso denominados hackers brancos, pelo mesmo motivo. São os inconvenientes de uma legislação penal demasiado branda: em outros países de nosso entorno, a polícia pode utilizar esses métodos.

Um colega de David, que não pode dar seu nome por razões óbvias, atua sem escrúpulos: "Quando encontro um desses fóruns, tento descobrir seus pontos vulneráveis. Se os encontro, envio o vírus correspondente, os destruo e me dá um barato".

Os ciber-sentinelas procuram páginas ou endereços de correio suspeitos. Uma vez obtido o dado, a polícia se encarrega do resto. Pedirá uma autorização ao juiz para identificar de onde opera o computador e começará a investigação. Como foi obtida a informação não importa. São denunciantes anônimos. O importante é caçá-los.

A polícia tem um trabalho mais amplo. Atrás dos milhões de fotos e imagens de menores que circulam pela Internet, há vítimas não identificadas. Sessenta das 600 vítimas infantis identificadas na Europa pela Interpol são espanholas. A Brigada de Delitos Tecnológicos do Corpo Nacional de Polícia é o grupo mais ativo para investigar até suas últimas conseqüências. Não se detém na mera captura dos culpados.

Esse foi o caso da operação Doha, que motivou a detenção de três pedófilos que tinham produzido 23 filmes abusando de nove menores, dois de 7 e 9 anos, sete entre 1 e 3 anos. Os três tinham como apelidos Nanysex, Todd e Aza, moravam em Murcia, Vigo e Barcelona. Eram homens jovens, integrados, um deles com estudos universitários, outro com nível de renda econômica elevado. Se relacionaram em um fórum e seu desejo de compartilhar experiências mais fortes os levou a conhecer-se pessoalmente. Um deles trabalhava como baby-sitter e se anunciava nos povoados onde vivia (um era Collado Villalba, na serra de Madri). Também administrava um cibercafé. Por esses meios, selecionava suas vítimas entre crianças muito pequenas. Uma menina era a filha da empregada que limpava sua casa. Outros, filhos de clientes que contratavam seus serviços ou vizinhos do cibercafé. Nas gravações, um dos três amigos gravava as imagens enquanto outro cometia a violação. O apelidado Todd foi recentemente reclamado pelo FBI: atribui-se a ele a violação de um menor nos EUA. Viajou até lá para obter as imagens de sua própria atuação.

As 60 vítimas espanholas identificadas correspondem a menores que vivem em um ambiente normal. Esse é outro estereótipo que é preciso erradicar. Não são filhos de famílias desestruturadas nem menores explorados por seus pais. Os pais desconheciam o que estava acontecendo, entre outras coisas porque o abusador se movimentava no entorno familiar, era alguém conhecido, um professor, um baby-sitter, um monitor, um amigo da família. Esse é o perfil. Esse é o perigo.

"Os manuais de psiquiatria descrevem até 12 tipos de pedófilos", diz Guillermo Cánovas, presidente da Protegeles.com. "Os estudos indicam que 90% dos pedófilos são homens, costumam ter mais idade que os violadores de mulheres adultas, têm trabalhos mais qualificados que estes, estão integrados na sociedade, com freqüência são casados, em 85% dos casos conhecem sua vítima, não têm antecedentes e em 68% dos casos são pais."

Segundo a Associação Psiquiátrica dos EUA, há um tipo de pedófilo que é especialmente perigoso, o chamado "pedófilo preferencial sedutor", que "pretende a ação sobre o menino através da sedução, o convencimento e a manipulação do menor", segundo indica o estudo. "Precisa de um certo grau de cumplicidade ou silêncio por parte de sua vítima, devido a três razões. Uma, que está integrado na sociedade e quer continuar assim. Duas, que quer repetir o abuso. E três, que sabe o que faz mas se justifica: 'se não quisesse teria se negado', 'os meninos gostam disso', 'estava me provocando'." Esses pedófilos se convencem de que as crianças têm capacidade para aceitar essas relações sexuais e lhes atribuem características dos adultos.

A Internet não só os colocou em contato. Infelizmente, também estimulou outro problema. "Cada vez ocorrem mais casos de pessoas, sobretudo jovens, que chegam à pedofilia através de seu vício em páginas de sexo, tanto heterossexuais como homossexuais", salienta Cánovas. "Muitos se reconhecem como viciados que precisam diariamente descobrir novas imagens de sexo. Passam para a zoofilia, para outras parafilias e através dessa experimentação e em busca de sensações cada vez mais fortes chegam à pornografia infantil."

Houve casos de indivíduos que percebem que estão infringindo uma barreira e pedem ajuda. Foi o caso de uma carta que chegou a uma dessas associações: "Comecei a me tornar viciado em pornografia, sobretudo da Internet, e encontrei a pornografia infantil (...) Eu não lhe causei danos a ninguém, mas começo a sentir esse tipo de fantasia e não quero, eu tenho um bebê de 1 ano e meio e tenho muito medo, isso corrói grande parte da minha vida (...) Às vezes fico tão mal que tenho medo de ter minha família ao meu lado (...) Por favor me ajudem a controlar minha vontade". Esse homem estava casado. Sabem que entrou em tratamento, ajudado por sua esposa, mas não conhecem o final da história.

Os estereótipos em relação a esse problema devem caducar. A polícia espanhola deteve mil pedófilos nos últimos quatro anos. É um dado incontestável. Como também é que, segundo as Instituições Penitenciárias, há somente 30 reclusos acusados desse delito nas prisões espanholas, com exceção da Catalunha. A razão desse desequilíbrio é muito simples: exatamente porque se trata de pessoas integradas, com residência conhecida e sem antecedentes penais, obtêm com facilidade a liberdade e, depois do julgamento, evitam a permanência na prisão: com a reforma do código penal de 2003 se contemplam condenações de um a quatro anos de prisão por posse de pornografia infantil, se não houver reincidência.

Sua culpa foi a de possuir ou distribuir pornografia infantil, mas essas circunstâncias não os exime de pertencer a uma das 12 categorias do pedófilo. Como os psiquiatras não garantem que a viagem à pedofilia tenha passagem de ida e volta, uma boa parte deles reincidirá. Talvez a partir de agora tenham mais cuidado, se esmerem nas precauções para que a polícia não volte a detê-los. E junto com esses mil detidos haverá outros, provavelmente milhares, que ainda não foram descobertos.

As associações exigem maior contundência nas condenações. Solicitam inclusive que exista um registro de pedófilos. Onde estão, o que fazem, recebem algum tratamento depois de detidos? Mil pedófilos voltaram para suas casas e nada se sabe deles.

Em meia dúzia de casos o assunto ficou definitivamente encerrado: o pedófilo se suicidou depois da detenção. Foi o caso de um professor de inglês e membro do Opus Dei. Vivia solto, mas compartilhava seu vício com outros. Uma tarde matou seu cachorro, depois pegou o carro e se esborrachou contra um muro.

Reportagem de Luis Gómez
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Do El País no UOL Mídia Global 06/02/2008

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