domingo, 10 de fevereiro de 2008

Escada para peixe aumenta risco de extinção

Estudos sugerem que mecanismo, criado no hemisfério Norte, falhou nos trópicos

Dispositivo funciona como uma "armadilha ecológica", atraindo cardumes para ambientes mais pobres e prejudicando reprodução

Se o presidente Lula soubesse como é dura a vida dos bagres, não manifestaria tanto desprezo por esses peixes.
Tome por exemplo os mandis do rio Tocantins: todo ano eles empreendem uma viagem extenuante de centenas de quilômetros para desovar. Ao chegarem ao local da barragem de Lajeado, ao norte de Palmas, são surpreendidos por aves aquáticas, botos e jacarés, predadores que se concentram abaixo da represa.
Depois, precisam atravessar uma escada construída especialmente para facilitar a transposição da barragem -mas que é patrulhada noite e dia por peixes carnívoros. Os que conseguem atravessar os 874 metros de escada sofrem ainda o ataque de tucunarés e piranhas, que habitam o reservatório. Os que têm sucesso na jornada dificilmente farão o percurso de volta até seu habitat original.
Pior: suas larvas e seus ovos serão quase todos destruídos ou devorados, o que põe populações inteiras de mandis -e outras três dezenas de peixes migradores do Tocantins- em risco de extinção.
O fenômeno observado em Lajeado por cientistas da Universidade Estadual de Maringá (PR) e da Universidade Federal do Tocantins está provavelmente se repetindo em vários rios Brasil afora: as chamadas escadas de peixe, concebidas para atenuar o impacto de hidrelétricas sobre a fauna, em vários casos acabam tendo o efeito inverso -estão acelerando extinções.
"Elas funcionam como armadilhas ecológicas", diz o biólogo Fernando Mayer Pelicice, da Universidade Estadual de Maringá. "Se forem feitas sem muitos estudos técnicos, acabam tirando os peixes de um ambiente onde eles têm condições de se reproduzir e jogando-os em um ambiente mais pobre", afirma.
Em um estudo publicado on-line no mês passado na revista científica "Conservation Biology", ele e seu colega Angelo Antonio Agostinho analisam casos de escadas instaladas na usina de Porto Primavera, no rio Paraná, e do complexo de hidrelétricas do rio Paranapanema. Concluíram que os dispositivos nos dois rios causaram impactos tão grandes à fauna que deveriam ser desativadas "imediatamente".
No caso das usinas de Canoas 1 e 2, no Paranapanema, operadas pela Duke Energy, as escadas causaram um colapso na pesca a jusante (rio abaixo) dos reservatórios. No primeiro ano de operação das escadas, em 2001, conta Pelicice, "a quantidade de peixes que subiu foi enorme". No segundo ano, no entanto, a piracema colapsou -sinal de que os peixes que subiram não desceram depois.
O pior, diz o biólogo, é que desta vez culpa não foi da empresa. "A Duke não queria construir as escadas, mas foi forçada a fazê-lo pelo Ministério Público", afirma Agostinho.
As razões pelas quais os peixes não voltam são várias. Mas, em geral elas são uma combinação da biologia dos peixes tropicais e do ambiente alterado pelas construção das usinas hidrelétricas.
Peixes migradores dos trópicos depositam seus ovos em afluentes dos grandes rios. Os ovos e as larvas descem o rio, seguindo a correnteza, e amadurecem no caminho. Mas, para isso, eles dependem de águas agitadas e turvas, o que as represas em geral não têm. Os adultos, por sua vez, tendem a evitar água parada. A aposta de Agostinho e Pelicice é que, na viagem de volta da piracema, a água parada da represa funciona como uma barreira. "Quando chegam à água estagnada eles não descem mais", diz Pelicice.

Esquema importado
As conclusões dos pesquisadores ainda são preliminares, e é impossível agora dimensionar qual tem sido o real impacto das escadas e de outros mecanismos de transposição de barragens sobre a fauna dos rios brasileiros. Segundo a dupla, a razão dessa ignorância é que sempre se assumiu que as escadas -algumas implementadas há mais de 50 anos- fossem uma boa idéia.
Isso porque no hemisfério Norte, onde foram concebidas para facilitar a subida de salmões, as escadas funcionaram.
Os poucos dados que sugeriam o oposto no Brasil estão perdidos em relatórios técnicos, afirma Pelicice. "Os primeiros estudos sistemáticos são de uma década para cá."
No ano passado, cientistas de vários países reuniram pela primeira vez dados sobre a eficácia das escadas em várias barragens da América do Sul. O resultado saiu na forma de uma série de estudos numa edição especial da revista "Neotropical Ichthyology" (www.ufrgs.br/ni). Eles são unânimes em recomendar parcimônia na adoção do mecanismo.
Em Lajeado, o impacto negativo da escada foi tão grande que o Ibama determinou seu fechamento. "Uma escada com subida indiscriminada não é boa em nenhuma situação", diz Agostinho. "Uma subida controlada ainda pode ajudar a manter a variabilidade genética dos cardumes a montante. Mas, se há ambientes propícios à reprodução a jusante e ambientes piores a montante, não há razão para a transposição."
O problema, afirma Pelicice, é convencer as autoridades e as empresas disso. "A lei determina que você tem de adotar medidas de mitigação, e o pessoal [empresas] acha mais fácil construir as escadas."


CLAUDIO ANGELO na Folha de São Paulo de 10/02/08

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