domingo, 22 de junho de 2008

O braço armado da obra do senador Marcelo Crivella

O braço armado da obra

Durante o regime militar, setores da esquerda acusavam as Forças Armadas de serem "a guarda pretoriana da burguesia" (ou da oligarquia, ao gosto do freguês). Diga-se, aliás, que essa acusação era generalizada na América Latina, quase toda ela tomada por governos militares.
É chocante que, na democracia, a frase (ou ao menos uma adaptação dela) perca o seu caráter de propaganda ideológica para se converter em mera descrição de um fato real.
O Exército, ainda por cima com aval da Justiça, transformou-se em guarda pretoriana de uma obra, no Rio de Janeiro, de indiscutível cunho eleitoral e partidário (em benefício do senador Marcelo Crivella, candidato à Prefeitura do Rio).
Duplamente chocante, aliás. Primeiro, há o fato de que o poder público assume explicitamente que é incapaz de realizar uma obra em um ponto central da cidade-vitrina do Brasil sem precisar recorrer a uma força armada que, ademais, não é a força armada que constitucionalmente responde pela segurança dos cidadão.
Entre parêntesis: se a entrevista de Marta Suplicy à Folha foi considerada pelos procuradores uma violação da "igualdade de oportunidades" que deveria primar em campanhas eleitorais, por que outros procuradores não representam contra o Exército por violar idêntica norma, ao proteger obras de um único candidato?
Fecha parêntesis para passar ao segundo aspecto chocante: a entrada do Exército como protetor de uma obra se dá em um governo, o de Luiz Inácio Lula da Silva, no qual abundam ex-esquerdistas, muitos dos quais abusavam da frase citada no primeiro parágrafo.
Alguma surpresa, ante a metamorfose ambulante dessa gente, que o noticiário político tenha virado noticiário policial, envolvendo quase sempre partidos da base aliada ao governo, como, de resto, no caso da obra no Rio?
Texto de Clóvis Rossi na Folha de São Paulo de 22/06/08


Co-autor sem autor

Uma velha brincadeira ilustra bem o, digamos, espírito do jornalismo: quando um cachorro morde um homem, não é notícia; mas, quando um homem morde um cachorro, dá primeira página!
Atualizando: quando traficantes dos morros se matam uns aos outros, isso é rotina, não comove ninguém. Mas, quando 11 militares do Exército entregam jovens desarmados para serem trucidados por marginais, vira manchete.
O governo acredita que houve um "crime premeditado". Antes de "desovar" os jovens vivos nas mãos de assassinos do morro da Mineira, o tenente Vinícius Ghidetti consultou um soldado que mora por ali para saber onde estavam os maiores inimigos deles no pedaço. Ou seja: onde os três seriam estraçalhados com mais volúpia.
Dos 11 militares, 4 já estão com prisão preventiva decretada por 30 dias e deverão ser julgados como "co-autores" de assassinato. Isso, porém, cria uma situação inusitada: será um crime com "co-autores", mas sem "autores"?
Porque todos -Exército, delegado, movimentos de direitos humanos, opinião pública e imprensa- só se preocupam e investigam o passo a passo dos 11 militares até os três corpos aparecerem num lixão. Mas ninguém fala, e aparentemente não investiga, quem apertou o gatilho e disparou os 46 tiros.
Discutem-se a psicologia do tenente, a formação de oficiais, o projeto político Cimento Social num ano de eleições e o uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Mas não se debate o chamado "cerne da questão": a guerra urbana que se alastra pelo país.
O fato novo (o homem que morde o cão) foi o envolvimento da farda, com militares se igualando a bandidos e negociando chacinas com eles. Mas o fato velho (pitbulls e rottweilers mordendo homens, mulheres e crianças) é tão crônico nas favelas e periferias que não emociona mais. Caiu na vala comum. E parece não ter solução.

De Eliane Cantanhêde na Folha de São Paulo de 22/06/08

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