Inimigos íntimos
Juíza reconhece união homoafetiva para fazer partilha de bens; "divórcio" entre casal gay é o primeiro em São Paulo
O amor entre eles foi instantâneo. Começou com uma troca safada de olhares no ônibus lotado, linha Jardim Eliana-Brás. Naquele dia, há sete anos, até foi bom o trânsito ruim que fez a viagem durar duas horas intermináveis. Mas, depois disso, rolaram traições, ciúmes, discussões. Pancadaria forte.
Até o televisor, comprado a prestação nas Casas Bahia, acabou estatelado no chão, durante uma briga. Dos móveis destruídos nem se fala. A vida em comum ficou insuportável e Marcio Chaves de Freitas, 39, educador social, decidiu deixar para trás a casa em que morava e que construíra para viver com Renato (nome fictício, a pedido dele), 35, auxiliar de serviços gerais. Freitas saiu sem ter para onde ir. Virou sem-teto.
Agora, Freitas luta pelo cumprimento de sentença judicial que, pela primeira vez na história da Justiça de São Paulo, e a um só tempo, determinou: 1) que os dois homens viveram uma união homoafetiva estável; 2) que essa união foi dissolvida; 3) que seja feita a partilha dos bens, bem poucos, diga-se, amealhados pelo par durante os cinco anos e meio de união.
Na sentença em que decidiu tudo isso, a juíza de Direito Lidia Maria Andrade Conceição, da 5ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional de Santo Amaro, diz que a "situação [vivida pelos dois homens] não divergiu da maior parte das pessoas que terminam uniões e rompem matrimônios".
"Fui humilhado", "abandonado", "jogado na rua". "Ele quis me transformar em lixo." Quem? "Eu não pronuncio o nome do coisa ruim", diz Freitas, parecendo citar uma letra de bolero, a respeito de Renato.
"Com uma bicha"
Separar sempre é complicado, mas, no caso de Freitas e Renato, muito mais. Não existe no Brasil nenhuma lei que regulamente a união ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, inexiste também apoio jurídico do Estado em casos de separação. Como dividir os bens?
Conversar, eles não conversam. Mal podem se olhar -é muito rancor. "Só quero que ele pague por ter-me feito sofrer mais do que sovaco de aleijado", diz Freitas.
Nem com conselho de família os dois podem contar. Renato, por exemplo: baiano, ele é pai de uma menina, fruto de um casamento anterior (com uma mulher). Alto, forte, barba por fazer, voz grossa, não quer que o pai, já idoso, descubra pelo jornal "que se amasiou com uma bicha" -palavras dele. Teme pelo que o susto da descoberta possa fazer com a debilitada saúde paterna. Este foi um dos motivos que o levaram a não dar entrevista à Folha.
Também os irmãos não sabem de nada. Mas, da parte deles, Renato teme mesmo é tomar uma pisa, que é outro nome para surra de pau.
Freitas não tem medo disso, assumidíssimo. Mas também não pode contar com a família, que vive em Pernambuco.
À Justiça, Freitas pediu uma indenização por danos morais no valor de R$ 30 mil, a devolução dos móveis da casa (afirma que foram comprados por ele), e a partilha do imóvel em que viveram juntos.
"Imóvel" é modo de dizer. Na Chácara do Conde, antiga invasão promovida por movimento sem-teto no extremo sul da cidade de São Paulo, perto da represa Billings, chamam de "edícula" a construção de 25 m2 nos fundos de um terreno de 125 m2, onde o casal morou.
É que o local chegou a ser projetado por urbanistas estrelados para ser um bairro popular modelo em plena área de preservação ambiental da represa Billings. Corriam os anos da administração de Luiza Erundina (1989-93). Finda a gestão dela, das casas planejadas, não ficou nem vestígio. Restou um bairro paupérrimo de construções improvisadas, muitas das quais -as menores- são chamadas de "edículas" das casas que nunca vieram. A de Freitas e Renato é dessas. Fica em uma rua de terra vermelha que, como as demais da Chácara do Conde, se transforma em lamaçal na época de chuvas.
"Tudo era amor. A gente passeava de mãos dadas pelo parque dos Eucaliptos, no Grajaú, jantava em pizzarias, dançava em uma boate gay no Bixiga. Quando fiz 32 anos, ele organizou um "assustado" [festa-surpresa] linda para mim. Aí veio a facada da traição no meu peito." O relato é de Freitas.
Ao sair da Chácara do Conde, Freitas teve de dormir em casas de conhecidos e em albergues para moradores de rua, como o Arsenal da Esperança e o que fica sob o viaduto Pedroso. Era um dândi no meio da miséria dos lugares. Caprichoso, lavava as roupas onde dava e guardava-as (com os documentos) em um bagageiro público mantido pela prefeitura.
Em sua sentença, a juíza não concordou com o pedido de Freitas de partilha dos móveis. "Quanto à devolução dos móveis, entendo da improcedência do pedido. Isso porque, quanto a alguns bens, como a TV, o próprio requerente [Freitas] não tem certeza de seu funcionamento, uma vez que derrubada durante desavença das partes que chegou a troca de agressões físicas."
As agressões mútuas também fizeram com que ela recusasse a indenização por danos morais. "Não se pode imputar exclusivamente ao requerido [Renato] a culpa pela situação de insuportabilidade da vida em comum."
A juíza concordou com a partilha do imóvel, que deverá ser leiloado para que o produto da venda seja dividido entre os dois ex-parceiros. Mas não expediu a carta de sentença, que materializaria sua decisão.
Na semana passada, a defensora pública Alessandra Pereira de Melo, 37, interpôs um agravo de instrumento a fim de que isso ocorra.
"Não há por que adiar a partilha do imóvel, ainda mais considerando-se que Freitas vive em situação de rua. Nenhum dos dois ex-companheiros recorreu contra essa decisão, então basta cumpri-la", diz a defensora.
Freitas insiste em levar a questão da indenização por danos morais para decisão em segunda instância. Mas é apenas nessa parte da sentença que as partes ainda discutem.
Renato tem grandes esperanças de continuar no imóvel, e de não ser obrigado a entregar metade dele para Freitas. A Folha apurou com vizinhos da Chácara do Conde que Renato acredita que, para isso, tem apenas de ficar quieto. Ele conta com a anulação de todo o julgamento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Explica-se: como a legislação brasileira não prevê uniões familiares de homossexuais, a instância superior pode entender que a questão deveria ter sido julgada por uma Vara Cível. Nunca por uma de Família.
Na Chácara do Conde, toda a vizinhança sabia que Freitas e Renato eram homossexuais -e "casados". "Quando me separei, demorou, mas a Justiça me garantiu casa, pensão e a guarda dos filhos. É muito triste ver o Marcio [Freitas] assim, jogado de um lado para outro, sem ter aonde ir. Ele não merecia", disse à Folha uma vizinha que não quis se identificar porque, como ela diz, "em briga de [pausa] não se mete a colher".
De Laura Capriglione na Folha de São Paulo de 06/07/08
Nenhum comentário:
Postar um comentário