Queda na desnutrição se deve à maior escolaridade materna
Fator foi principal responsável pela redução da desnutrição infantil, diz Carlos Augusto Monteiro
Um dos responsáveis por pesquisa do Cebrap, ele diz que maior nível de escolaridade ajuda mães a cuidar melhor dos filhos
A maior escolaridade das mães é o principal fator para a queda pela metade da desnutrição infantil no Brasil. No período 1996-2006, também pesaram para a obtenção desse resultado o aumento da renda familiar, a melhora da rede pública de saúde e a expansão das redes de saneamento básico.
É o que afirma Carlos Augusto Monteiro, do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) da USP, um dos responsáveis pela pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde e coordenada pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). A seguir, os principais trechos da entrevista:
FOLHA - A grande novidade da pesquisa está na queda da desnutrição?
CARLOS AUGUSTO MONTEIRO - Sem dúvida. Temos uma redução muito acentuada da prevalência da desnutrição infantil nos últimos dez anos. Em 1996, 13,5% das crianças entre zero e cinco anos padeciam de desnutrição crônica, identificada pela presença de déficits do crescimento. Na pesquisa de 2006, a mesma prevalência foi de 6,8%. A queda é de 50%, e as pesquisas são comparáveis. A desnutrição infantil vem declinando no Brasil desde 1975, quando alcançava 37% das crianças. Em 1989 alcançava 19,8%.
FOLHA - Pode-se dizer então que, em dez anos, caiu pela metade o número de crianças que passa fome?
MONTEIRO - Não, não é bem isso. Esses números dizem respeito à desnutrição crônica, que revela condições não adequadas de alimentação em quantidade ou qualidade, habitualmente associadas a episódios repetidos de diarréia e infecções respiratórias. Os números indicam que essas crianças estão agora mais bem alimentadas e com melhor saúde.
FOLHA - Existe uma queda uniforme em todas as regiões do país?
MONTEIRO - Essa é a outra grande novidade. O declínio da desnutrição infantil na região Nordeste foi intenso nos últimos dez anos (de 22% para 6%), de tal modo que o tradicional diferencial entre o Nordeste e o centro-sul já não mais existe. Com 14% de crianças desnutridas, a região Norte é, hoje, o grande problema.
FOLHA - A desnutrição crônica é a pior forma de desnutrição?
MONTEIRO - Na realidade, é a forma de desnutrição com a qual devemos nos preocupar. Nunca tivemos uma prevalência elevada de desnutrição aguda, que está mais associada à fome, à escassez absoluta de alimentos, como em alguns países da África ou do sul da Ásia. Em 1996 esse problema ainda existia de forma residual no Nordeste, mas hoje pode-se dizer que está sob controle.
FOLHA - Qual o quadro em termos de porcentagem?
MONTEIRO - As formas agudas de desnutrição são identificadas quando a proporção do peso para a altura é muito baixa. Em populações bem nutridas, não mais do que 2% das crianças estão nessa situação -as crianças constitucionalmente magras. No Nordeste, em 1996, ainda tínhamos 3,5% de crianças assim. Hoje, temos 2%. O problema não existe mais.
FOLHA - Por que essa melhoria? Seria em razão dos programas de distribuição de renda?
MONTEIRO - O fator mais importante, que explicaria um terço do declínio, foi a melhoria excepcional no nível de escolaridade das mães. A seguir, o aumento do poder aquisitivo das famílias, o que explicaria quase outro terço do declínio.
FOLHA - Por quê?
MONTEIRO - Quando falamos de escolaridade, falamos essencialmente da qualidade do cuidado infantil. A maior escolaridade ajuda a mãe a saber como alimentar seu filho, quando levá-lo ao posto de saúde, quais vacinas precisa tomar, como buscar ajuda etc. A associação entre escolaridade materna e risco de desnutrição infantil é uma das mais fortes e mais consistentes na área de estudos populacionais.
FOLHA - Como evoluiu a escolaridade materna entre 1996 e 2006?
MONTEIRO - Os filhos de mães com menos de quatro anos de escolaridade eram 28% das crianças e hoje são 11%. Já os filhos de mães com pelo menos oito anos de escolaridade passaram de 32% para 62%.
FOLHA - Trata-se então do resultado de investimentos feitos pelos governos no passado.
MONTEIRO - Exato. A maioria das mães de que estamos falando têm entre 20 e 30 anos e, portanto, cursaram o ensino fundamental há dez ou 20 anos. Estamos agora colhendo os frutos de investimentos no ensino fundamental naquele período. E o prosseguimento desses investimentos nos últimos dez anos nos autorizam a prever melhorias na nutrição infantil.
FOLHA - E qual o peso do Bolsa Família nesse quadro?
MONTEIRO - A cobertura do Bolsa Família é muito alta nos estratos de menor renda e, nesses estratos, o valor recebido representa parte importante da renda das famílias. Certamente o Bolsa Família teve papel importante em reduzir de 33% para 10% a proporção de crianças classificadas na classe E de poder aquisitivo. Mas outros fatores, como a redução do desemprego e o aumento real do salário mínimo ajudaram. Pode-se dizer que, juntos, o Bolsa Família, a redução do desemprego e o aumento do salário mínimo explicariam quase um terço do declínio da desnutrição infantil entre 1996 e 2006.
FOLHA - Há outros fatores?
MONTEIRO - Sim, há também a expansão de cobertura na rede básica de assistência à saúde e no saneamento. A proporção de filhos de mulheres que fizeram ao menos seis consultas de pré-natal aumentou no período de 59% para 75%, enquanto a proporção dos que residiam em domicílios ligados às redes de água e esgoto passou de 32,1% para 43,5%. A melhoria mais modesta nesses indicadores explica o por que de a expansão da assistência à saúde e do saneamento terem impacto menos expressivo sobre o declínio da desnutrição. E aponta a necessidade de investir mais nesses setores. Com mais investimento -e mantendo-se as melhorias expressivas na escolaridade das mães e no poder aquisitivo-, em menos de dez anos poderemos considerar a chaga da desnutrição infantil como coisa de um passado que gostaríamos de não ter tido.
FOLHA - E quando se trata de comparações entre os mais ricos e os mais pobres?
MONTEIRO - Dividimos a população de crianças em cinco quintos crescentes do poder aquisitivo familiar. Em 1996, entre os 20% mais pobres, a desnutrição era de 30%. Hoje, é de 11%. Em dez anos, a desnutrição foi praticamente reduzida a um terço. Entre os mais ricos, era de 5%, e temos hoje 4%.
FOLHA - Como explicar a desnutrição de crianças mais ricas?
MONTEIRO - A proporção de crianças de baixa estatura em populações bem alimentadas e com ótimas condições de saúde é, por definição, de 2,3%. Tudo o que tivermos acima de 2,3%, em tese, representa desnutrição. Os 4% de crianças nessas condições no estrato de maior poder aquisitivo pode ser devido à presença de doenças, cuidados insuficientes, mães adolescentes, entre outros fatores.
FOLHA - Como os resultados da pesquisa situam o Brasil diante de outros países em desenvolvimento?
MONTEIRO - Uma forma de avaliar é comparar a prevalência de crianças desnutridas no Brasil com a mesma prevalência em países com o mesmo PIB (soma das riquezas produzidas) per capita. Para fazer essa comparação, usamos dados de 87 países em desenvolvimento, além do Brasil. Em 2006, a prevalência de cerca de 7% de crianças desnutridas seria menos da metade daquela prevista pela curva internacional. A mesma comparação em 1975 indica que àquela época a prevalência era superior a países com o mesmo PIB per capita.
FOLHA - Quais as comparações com a América Latina?
MONTEIRO - A comparação mais adequada talvez seja com o México, país cujo PIB per capita é semelhante ao do Brasil. Lá, a desnutrição infantil no mesmo ano de 2006 alcançava cerca de 13% das crianças, mais que o dobro do observado no Brasil.
Reportagem de João Batista Natali, na Folha de São Paulo de 05/07/08
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