Bispo em greve de fome repõe a transposição do São Francisco em pauta; interesse eleitoral parece vencer as fortes objeções
A PROPAGANDA do governo Lula quer fazer crer que o projeto de transposição do rio São Francisco vai transformar o sertão semi-árido num mar de água doce encanada. Uma população de 12 milhões de pessoas seria beneficiada, ao custo total de R$ 4,5 bilhões. Apesar das dúvidas perenes sobre sua real necessidade, o programa de óbvio apelo eleitoral parece mesmo fadado a sair das pranchetas.
As obras, ao menos, já começaram. Em junho, batalhões do Exército iniciaram escavações preliminares em Cabrobó (PE). Ali será feita a captação de água para os canais de um de seus dois eixos, o Norte, no qual bombas poderosas terão de vencer 180 m de altitude para alcançar as bacias-alvo, como a do Jaguaribe. No Leste, o desafio de engenharia é maior: desnível de 300 m. Serão beneficiados Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. O plano é ter os primeiros canais e açudes em dois anos, a tempo para a eleição de 2010.
Adversários da transposição, diante do fato consumado, recorrem a medidas extremas, como a retomada da greve de fome de dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra (BA). Alegam, com apoio de vários especialistas, que o projeto não equaciona os verdadeiros problemas do rio e da população que dele depende, como a poluição da água. Afirmam, ainda, que ela não chegará às pessoas que mais precisam, mas servirá de modo preferencial aos grandes projetos de irrigação -o agronegócio demonizado por movimentos sociais com apoio da Igreja Católica.
Com efeito, a própria Agência Nacional de Águas (ANA) alertou em seu "Atlas Nordeste", um ano atrás, que 41 milhões de nordestinos poderão enfrentar insegurança hídrica se não forem realizadas obras adicionais -ao custo de R$ 3,6 bilhões- para distribuir de fato a água. Parece também exagero a cifra de 12 milhões de beneficiários, em realidade toda a população urbana na área das bacias receptoras.
Mesmo onde já existe infra-estrutura para irrigação no Nordeste, metade do potencial deixa de ser aproveitado por agricultores, por falta de capital e crédito. Por fim, diante do descaso tradicional com saneamento básico, parece pouco provável que se cumpram as promessas de expandir a rede de coleta de esgotos ao longo do Velho Chico.
O governo de Lula (que só se converteu à transposição depois de se tornar presidente e então a incluiu no programa para a reeleição) não conseguiu ainda responder de modo satisfatório a todas essas objeções. Por outro lado, tem sido bem-sucedido na superação das barreiras institucionais que poderiam se contrapor à obra, aprovando no Congresso recursos orçamentários para tocá-la e obtendo do Ibama, em março deste ano, a licença de instalação do empreendimento.
Diante do fato a consumar-se, parece mais pragmático, agora, vigiar de perto a empreitada para que não enseje dois outros resultados deletérios mais que previsíveis no Brasil: o desvio de verbas e o risco usual de que a obra bilionária termine abandonada quando Lula deixar o cargo.
Fonte: Editorial da Folha de São Paulo de 15/12/07
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