segunda-feira, 21 de abril de 2008

Alta de alimentos no mundo coloca governos sob pressão

Comida típica dos haitianos mais miseráveis: bolinhos feitos de barro, óleo e açúcar

Países pobres e em desenvolvimento tornaram-se alvo de instabilidade política

Com dificuldades de comprar alimentos, que ficaram mais caros, população de países na África, na Ásia e na América exige medidas do governo

Protesto contra alta dos alimentos em Porto Príncipe, no Haiti

A fome derrubou o portão de entrada do palácio presidencial do Haiti e causou a demissão do primeiro-ministro do país. A fome do Haiti se tornou mais intensa nos últimos dias à medida que os preços mundiais dos alimentos disparam em uma alta sem controle, que já supera os 45% do final de 2006 para cá e fez dos alimentos básicos haitianos como o arroz, o feijão e o milho tesouros protegidos com o maior cuidado.
Há alguns dias, os filhos de Saint Louis Meriska receberam apenas duas colheres de arroz na única refeição que fizeram.
No dia seguinte, eles ficaram sem comida. O pai, desempregado, contemplava o chão ao dizer: "Eles me olhavam e diziam que estavam com fome. E eu nada podia fazer. Isso é humilhante e causa raiva".
Na Índia, as pessoas estão dando menos leite às suas crianças. As vasilhas servidas diariamente estão ficando mais ralas, já que um saco de lentilha precisa render cada vez mais refeições.
A crise dos alimentos não está sendo sentida apenas pelos pobres, mas vem erodindo os ganhos da classe trabalhadora e da classe média, semeando uma insatisfação crescente e colocando ainda mais pressão sobre governos frágeis.
No Egito, as Forças Armadas foram encarregadas de assar pão para a população. Lá, a alta dos alimentos ameaça se tornar a fagulha que deflagraria uma explosão de ira contra um governo repressivo.
Em Burkina Fasso e outros países africanos ao sul do Saara, distúrbios pela falta de alimentos também vêm surgindo. Na razoavelmente próspera Malásia, a coalizão governante foi quase derrubada pelos eleitores, que mencionam os aumentos nos preços dos alimentos como sua preocupação.
"Trata-se da maior crise desse tipo que vivemos em mais de 30 anos", disse Jeffrey Sachs, economista e assessor especial de Ban Ki-moon, secretário geral das Nações Unidas. "É uma questão grave e obviamente ameaça muitos governos. Diversos deles já estão sob forte assédio e acredito que conseqüências políticas ainda mais graves virão".
De fato, a alta nos preços das commodities, a maior desde a era Nixon (1969-1974), vem opondo o sul pobre do mundo ao norte relativamente próspero e reforçando a demanda por reformas nas políticas agrícolas dos países desenvolvidos.
Mas os especialistas dizem que não há soluções rápidas para uma crise vinculada a tantos fatores. Na Ásia, os governos estão colocando em vigor medidas que limitarão os estoques caseiros de arroz, depois que consumidores entraram em pânico diante da alta de preços e começaram a adquirir o produto em grande volume.
Mesmo na Tailândia, que tem excedente de 10 milhões de toneladas de produção de arroz com relação ao consumo e é o maior exportador mundial do produto, os supermercados estão exibindo cartazes que limitam a quantidade que cada comprador pode adquirir.

Tempestade escandalosa
"Estamos vivendo a tempestade perfeita", disse o presidente de El Salvador, Elías Antonio Saca, no Fórum Econômico Mundial sobre a América Latina, em Cancún, México, na última quarta-feira. "Por quanto tempo mais poderemos suportar essa situação? Temos de alimentar nossos povos e as commodities se tornaram escassas.
Essa tempestade escandalosa pode se tornar um furacão que varreria não só as nossas economias, mas também a estabilidade de nossos países."
Na Ásia, caso o primeiro-ministro malaio Abdullah Ahmad Badawi renuncie, o que parece cada vez mais provável em meio ao tumulto que vem abalando seu partido desde a eleição, ele pode se tornar o primeiro líder político da região a cair vítima da inflação dos alimentos e dos combustíveis.
Na Indonésia, por medo de protestos, o governo revisou seu orçamento para 2008 e elevou o montante que dedicará ao subsídio de alimentos em cerca de US$ 280 milhões.
"A maior preocupação são conflitos causados pela falta de alimentos", disse H. S. Dillon, ex-assessor do Ministério da Agricultura da Indonésia.
No mês passado, no Senegal, policiais portando equipamento de choque espancaram e atacaram com gás lacrimogêneo manifestantes que estavam protestando contra os preços altos. Muitos senegaleses expressaram raiva do presidente Abdoulaye Wade, que investiu pesadamente na construção de estradas e hotéis cinco estrelas para uma conferência realizada no mês passado, enquanto muitos dos cidadãos do país são incapazes de arcar com os preços do arroz ou do peixe.
O presidente René Préval, do Haiti, parece ter desafiado e insultado a população, enquanto o coro contra "a vida cara" ganhava volume nas ruas. Préval disse que, se os haitianos tinham dinheiro para comprar telefones celulares, deviam ter dinheiro para alimentar suas famílias. "Caso haja protesto contra a alta dos preços, venham ao meu palácio me procurar e sairei às ruas com vocês", disse Préval.
Quando os haitianos atenderam ao seu convite, enraivecidos e aos milhares, o presidente preferiu ficar protegido no palácio, enquanto sua guarda e as forças de paz das Nações Unidas resistiam à população. Após poucos dias, a oposição votou pela demissão do primeiro-ministro de Préval, Jacques-Édouard Alexis, levando o presidente a implementar reformas de governo.
"Por que fomos apanhados de surpresa?", perguntou Patrick Élie, ativista haitiano que acompanhou os tumultos na África, no começo deste ano, e temia que eles chegassem ao Haiti. "Quando algo está chegando de tão longe quanto Burkina Fasso, deveríamos estar preparados. O que tínhamos era como uma lata de gasolina deixada para que alguém a acendesse com um fósforo."
Em Níger, protestos em massa na capital, Niamey, levaram o governo a enfim voltar a sua atenção à crise alimentar há três anos, causada por uma complexa combinação de chuvas insuficientes, pragas de gafanhotos e manipulação do mercado por operadores.
"Como resultado dessa experiência, o governo criou um posto em nível de gabinete para enfrentar o problema do custo de vida elevado", disse Moustapha Kadi, ativista que ajudou a organizar os protestos de 2005.
"Quando os preços voltaram a subir neste ano, o governo agiu rapidamente para remover as tarifas sobre o arroz, que todo mundo come. A rapidez evitou que as pessoas saíssem às ruas."
No Haiti, onde 75% da população ganha menos de US$ 2 ao dia e 20% das crianças sofrem de subnutrição crônica, o único negócio que floresce nessa era sombria é a venda de bolinhos feitos de barro, óleo e açúcar, tipicamente consumidos apenas pelos mais miseráveis."Eles acalmam o estômago", disse Olwich Louis Jeune, 24, que nos últimos meses passou a comer mais desses bolinhos. Mas as queixas no Haiti hoje não se limitam ao estômago.
Elas estão sendo pichadas nos muros da capital e gritadas pelos manifestantes. Nos últimos dias, o presidente Préval deu uma resposta, usando verbas de assistência internacional e reduções de preços para os importadores a fim de cortar em cerca de 15% o preço de um saco de arroz. Ele também cortou os salários de alguns funcionários importantes do governo.
Mas essas medidas são consideradas temporárias. Soluções reais demorarão anos. Enquanto isso, a maioria dos haitianos mais pobres sofre em silêncio, fracos demais para protestar ou ocupados demais cuidando da próxima geração de famintos.
Em Cité Soleil, uma imensa favela haitiana, Placide Simone ofereceu um de seus cinco filhos a um desconhecido: "Pode levar", ela disse, segurando um bebê imóvel nos braços e apontando em direção a quatro crianças magérrimas, nenhuma das quais havia comido naquele dia. "Pode escolher. Basta alimentá-los."

De MARC LACEY DO "NEW YORK TIMES", EM PORTO PRÍNCIPE, HAITI
Tradução de PAULO MIGLIACCI

Na Folha de São Paulo de 21/04/08

Um comentário:

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