O surto na demanda por milho para a produção de álcool pode contribuir para agravar a fome neste ano. A alta nos preços de alimentos, movida em parte pela demanda do etanol, promoveu um corte na quantidade de comida que o governo pode comprar, e a ajuda alimentar chegou ao seu mais baixo nível em uma década.
Os EUA, maior doador do mundo, compraram menos da metade da quantidade de comida para assistência neste ano do que a contribuição de 2000, de acordo com novos dados do Departamento de Agricultura.
"As pessoas que estão morrendo de fome e dependem da ajuda vão sofrer", disse em entrevista Jean Ziegler, relator especial da ONU ao direito à alimentação.
O preço do milho caiu um pouco nos últimos meses, mas ainda assim está muito mais alto do que era há um ano. A demanda por etanol também elevou indiretamente o preço crescente da soja, pois a terra que produzia soja mudou para o milho. E o preço do trigo explodiu com a seca que prejudicou a produção na Austrália, sua maior produtora.
Os preços mais altos dos alimentos não reduziram apenas a quantidade doada pelos EUA, mas também estão tornando mais difícil para os pobres comprarem alimentos eles mesmos, dizem os economistas e defensores de quem tem fome.
"Tememos que o aumento constante dos preços de alimentos atinja mais duramente os que estão na linha de frente da fome", disse Josette Sheeran, diretora executiva do programa da ONU Comida Mundial.
Ela advertiu que os gastos com assistência alimentar teriam que crescer só para continuar alimentando o mesmo número de pessoas. No entanto, o orçamento para o próximo ano, que está sendo avaliado no Congresso, não promete aumentos significativos no orçamento de alimentos.
O efeito do preço dos alimentos sobre a assistência faz parte de um debate mais amplo sobre o impacto de longo prazo sobre os pobres com a utilização de produtos alimentícios para produzir álcool e outros biocombustíveis, uma estratégia que países ricos como os EUA esperam que eventualmente reduza sua dependência do petróleo do Oriente Médio.
Alguns defensores dos pobres dizem que os preços dos alimentos em alta podem beneficiar agricultores pobres em países em desenvolvimento, dando-lhes mercados e retornos decentes para seus cultivos.
Outros, porém, advertem que o uso crescente de produtos alimentícios para produzir combustível, especialmente se for promovido por amplos subsídios em países ricos, pode aumentar substancialmente os preços dos alimentos e levar centenas de milhões de pessoas à fome, especialmente os pobres urbanos e rurais sem terra.
O uso de alimentos para fazer biocombustível também tende a favorecer produtores com muito capital e grandes terras, em vez dos agricultores de pequena escala empobrecidos, que não têm armazéns para grãos, em países pobres afligidos por estradas ruins.
"As políticas estabelecidas serão cruciais em determinar se os produtores pequenos e o povo onde há fome poderão se beneficiar", disse Bem Senauer, co-diretor do Centro de Indústria Alimentícia a Universidade de Minnesota.
Por enquanto, a assistência alimentar está sofrendo, assim como os pobres em países pobres, dizem os economistas. E sua situação ainda pode piorar no próximo ano, dizem organizações internacionais e agências de alívio.
A Organização de Alimentos e Agricultura da ONU estima que os países de baixa renda dependentes de importações de alimentos, incluindo a maior parte da África sub-saariana, pagarão 14% a mais para importar cereais no ano que vem.
A capacidade do mundo de absorver choques de preços encolheu junto com os estoques globais de alimentos.
"Estamos muito preocupados", disse Henri Jossserand, que chefia o sistema de advertência e informação global da organização.
"Os estoques de alimentos mundiais estão muito menores do que costumavam ser. Vamos ficar de olho no tempo.
"O declínio da ajuda alimentar também poderá continuar. O grupo de Serviços de Alívio Católicos, importante distribuidor da ajuda americana, projetou aumentos substanciais no preço que o governo federal pagará para enviar ajuda no ano que vem, com base na análise do mercado de futuros para trigo, milho e soja, que são a base da ajuda alimentar.
"É má notícia e não só vai afetar a ajuda alimentar dos EUA, mas a ajuda alimentar de todas as fontes", disse Frank Orzechowski, corretor de commodities aposentado que agora presta consultoria aos Serviços de Alívio Católicos, um grupo sem fins lucrativos.
O declínio na quantidade de ajuda alimentar neste ano seguiu um período de forte aumento nos custos de envio de alimentos produzidos nos EUA para África e Ásia, que já tinham provocado uma redução na quantidade oferecida.
O Escritório de Contabilidade do governo dos EUA concluiu, no início do ano, que o número de pessoas ajudado pela comida americana caiu de 105 milhões em 2002 para 70 milhões em 2006, principalmente devido aos custos crescentes de transporte e logística.
Agora, os preços dos alimentos também estão tendo um papel. Novos dados do Departamento de Agricultura mostram que o custo dos alimentos do principal programa de alimentação do governo, Comida para a Paz, aumentou 35% nos últimos dois anos.
A quantidade de comida comprada por programas norte-americanos de assistência caiu de 5,3 milhões de toneladas em 2000, para 4 milhões de toneladas em 2005 e 2,4 milhões de toneladas neste ano.
Thomas Melito, que supervisionou a investigação do Escritório de Contabilidade neste ano, chamou os custos crescentes de "assustadores".
"Em uma situação em que há 850 milhões de pessoas passando fome no mundo, o programa só forneceu o suficiente para 70 milhões de pessoas em 2006, e os novos totais serão ainda menores", disse ele. "A necessidade de tornar este programa mais eficiente é ainda maior.
"O Congresso agora está considerando mudanças no programa de ajuda alimentar como parte do projeto de lei de agricultura. Segundo alguns economistas e defensores dos que têm fome, as mudanças melhorariam a eficiência do programa e permitiriam que alimentasse mais pessoas.
Eles apontam para uma proposta do governo Bush que permitiria ao governo usar até US$ 300 milhões (em torno de R$ 600 milhões) do orçamento de ajuda alimentar para comprar comida em países africanos, perto das situações de emergência, em vez de enviá-la dos EUA em navios de bandeira americana, como a lei atual requer.
Em seu discurso na ONU nesta semana, o presidente Bush disse que a proposta apressaria a entrega e ajudaria a criar um mercado para agricultores pobres em países em desenvolvimento.
A versão da lei da Câmara não inclui esse item. O Comitê de Agricultura do Senado ainda não apresentou um projeto de lei.
"Para mim, essa é a saída dessa encruzilhada", disse Emmy Simmons, economista de agricultura e gerente aposentada da Agência Americana para Desenvolvimento Internacional.
Texto de Célia W. Dugger - Tradução: Deborah Weinberg
Fonte: The New York Times de 29/09/07
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