No final da semana passada, o presidente da República enviou ao Congresso um novo Projeto Nacional de Política de Resíduos Sólidos - área em que nosso atraso é inacreditável. Será que desta vez conseguiremos sair, literalmente, das montanhas de resíduos que nos envergonham?
Não será fácil. Basta lembrar a última tentativa - já comentada aqui -, quando centenas de projetos nessa área que tramitavam pelo Congresso Nacional foram, em 2000, sistematizados num único projeto pelo relator designado, o então deputado Emerson Kapaz. Tinha ele vários dispositivos interessantes, como o que tornava obrigatória a coleta seletiva e reciclagem em municípios com mais de 100 mil habitantes (embora se pudesse perguntar por que só neles), ou as restrições ao consumo de bebidas e refrigerantes enlatados em recintos abertos - entre outros. Mas bastaram umas poucas audiências no Congresso, com os lobbies dos setores interessados a todo vapor, para que se fosse de recuo em recuo, até voltar à estaca zero.
O novo projeto enumera vários princípios louváveis que devem inspirar a política do setor, entre eles os que dão preferência a materiais reciclados nas aquisições governamentais e o que propõe a integração de cooperativas de catadores de resíduos nos programas. Mas a ausência de diretrizes obrigatórias para vários setores que geram resíduos, assim como a não-responsabilização dos geradores de lixo de qualquer tipo pelos custos de coleta e destinação geram dúvidas sobre a eficácia da política proposta. Se é que passará pelo Congresso no formato proposto.
Preocupa. Porque o quadro atual nessa área é dramático. Segundo o IBGE, já em 2002 eram coletadas a cada dia no País 228,4 mil toneladas de resíduos domiciliares e comerciais (fora os entulhos - uma tonelagem maior que a daqueles -, lixo industrial, lixo de estabelecimentos de saúde e outros). E desse total nada menos que 59,5% não tinham destinação “adequada”. Ou seja, iam para lixões a céu aberto 146,8 mil toneladas diárias, ou 55,8 milhões dos mais de 90 milhões de toneladas, 90 bilhões de quilos, coletados a cada ano. E o custo da coleta, tomando por base um preço médio de R$ 30 por tonelada, superava R$ 2 bilhões anuais. Fora o custo nos aterros.
Como em praticamente tudo, a situação era muito desigual comparando as regiões do País. No Sul e no Sudeste, mais de 98% das residências eram servidas pela coleta. Já no Norte, apenas 87,5%; no Nordeste, 89,4%; no Centro-Oeste, 96,5%. Nas áreas rurais, onde ainda está quase 20% da população, apenas 17,4% dos domicílios dispunham de coleta. Sem falar no lixo não-domiciliar nessas áreas, que é um dos graves problemas sem encaminhamento em praticamente todo o País - basta lembrar que um boi ou um porco geram algumas vezes mais matéria orgânica que um ser humano em suas fezes; e que esses dejetos são atirados no solo (acidificando-o) e vão para os cursos d’água. E o Brasil tem mais bois (205 milhões) que seres humanos, cerca de 40 milhões de porcos e mais de 1 bilhão de “galináceos”. O projeto da nova política inclui o lixo rural entre as áreas abrangidas, mas sem nenhum encaminhamento específico.
O problema dos custos é central. A política proposta atribui ao gerador de resíduos sólidos urbanos a responsabilidade pelo acondicionamento, a disponibilização para a coleta, tratamento e disposição final “ambientalmente adequada” dos dejetos. Mas sua responsabilidade cessa com essa “disponibilização adequada de seus resíduos sólidos para a coleta”. Ou seja, o projeto não lhe atribui responsabilidade pelos custos da coleta e destinação. E se isso não acontecer, dificilmente se avançará. Os custos continuarão a cargo do poder público, semifalido em toda parte. E não se fará justiça, atribuindo maior custo a quem gera mais resíduos. Nem se estimulará a redução da geração de lixo - que deve ser o primeiro e maior objetivo de qualquer política nessa área. Também não se conseguirá minimizar o drama dos aterros no País (basta lembrar o caso da capital paulista: que se fará no mês que vem com o fechamento do Aterro São João, já que o Bandeirantes também está esgotado e a cidade recicla menos de 1% de seu lixo domiciliar e comercial ?).
Um dos méritos do projeto está em seu artigo 31, ao proibir a importação de resíduos sólidos e rejeitos “cujas características causem danos ao meio ambiente e à saúde pública, ainda que para tratamento, reformas, reúso, reutilização ou recuperação”. Se aprovado, permitirá proibir a importação de pneus velhos para reciclagem, recauchutagem ou reúso - várias vezes já comentada neste espaço Afirma-se que no ano passado entraram no País, graças a liminares judiciais, 15 milhões de pneus velhos, principalmente da Europa e do Uruguai.
Também será preciso ver como se encaminhará a questão dos milhares e milhares de famílias que sobrevivem da catação de resíduos em aterros ou lixões, já que o projeto proíbe essa atividade “nas áreas de disposição final”, assim como impede que tenham ali suas casas. Vai-se despejá-las? Será preciso, no mínimo, prover habitação, integrá-las às cooperativas de catadores, que, pelo projeto, terão tratamento preferencial. Dando seqüência até ao decreto presidencial do ano passado, que tornou obrigatória a coleta seletiva em órgãos públicos federais e a destinação dos resíduos às associações e cooperativas de catadores, bem como à abertura de uma linha de crédito especial para elas no BNDES. Seria oportuno também revigorar a portaria do governo anterior que isentava de impostos as vendas de plásticos pelas cooperativas a recicladoras - mas que, estranhamente, foi revogada no atual governo.
Será decisivo que a sociedade abra uma discussão sobre o tema. E faça sentir no Congresso Nacional a sua força. Para que o tema não fique exposto demais aos lobbies conhecidos.
Texto de Washington Novaes no Jornal O Estado de São Paulo de 14/09/07
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