A coligação rentista, que nos governa, está em festa: para a Standard & Poor's, somos "investment grade"
A ECONOMIA brasileira não fez outra coisa, nas últimas décadas, a não ser adaptar-se aos ciclos do capital financeiro internacional. Na década de 1970, absorvemos, sob a forma de dívida, uma fração do excesso de liquidez provocado pelo acúmulo dos petrodólares.
Na década de 1980, com o governo dos Estados Unidos enxugando essa liquidez, fomos convocados a remeter ao exterior um múltiplo do que havíamos recebido; iniciamos um longo período de crise. Na década de 1990, quando o sistema financeiro retornou a uma posição emprestadora, fomos chamados a renegociar a "dívida velha", para voltar a receber recursos novamente disponíveis. Graças a eles, durante vários anos, sustentamos déficits em transações correntes, o verdadeiro lastro do Plano Real. Uma nova crise cambial, alguns anos depois, mostrou como tudo era frágil.
O problema estrutural da economia brasileira é sua condição de "economia reflexa", que apenas se adapta a ciclos externos e, por isso, não constitui um projeto próprio de desenvolvimento. A expressão não é minha, mas de Eugênio Gudin, cunhada na década de 1950. Aprofundamos essa condição ao nos inserir no processo de globalização, principalmente, pelos fluxos financeiros, ao contrário das economias asiáticas, que privilegiaram a inserção pela produção e o comércio. Elas sempre selecionaram os investimentos que consideram desejáveis, aqueles que fortalecem as economias locais, e recusaram os indesejáveis, o endividamento irracional e predador, que prepara desequilíbrios e crises.
Nós nos atrelamos a capitais que mantêm conosco vínculos tênues, ligados a oportunidades de realizar bons negócios no curto prazo. Como o espaço de manobra desses capitais ultrapassa amplamente o espaço da sociedade nacional, perdemos a capacidade de controlar o nosso processo de desenvolvimento. A abertura financeira, iniciada por Collor e concluída por Lula, entregou a eles o nosso destino.
A primeira conseqüência é a fraca capacidade de nossa sociedade de disciplinar o impulso de acumulação de capital, compatibilizando-o com o equacionamento da questão social e o fortalecimento da soberania nacional, em bases economicamente sustentáveis. A segunda conseqüência é o aprofundamento da tendência a realizar ajustes passivos aos ciclos internacionais. A conjuntura favorável dos últimos anos -um gigantesco "choque externo positivo"- tem servido para legitimar essa opção.
A coligação rentista, que nos governa, está em festa: para a Standard & Poor's, somos "investment grade". Mais capital especulativo ficará disponível para operações de arbitragem. As empresas poderão tomar mais recursos lá fora, a juros reais negativos, para aplicá-los nos papéis mais rentáveis do mundo, remunerados pelo Estado brasileiro.
Não importa em quanto aumentará o nosso passivo externo líquido -imenso, porém discreto, pois não contabilizado na forma de uma dívida tradicional. Não importa que, com uma nova rodada de apreciação cambial, aprofunde-se a tendência ao desequilíbrio em conta corrente e se consolide uma economia baseada em indústrias maquiadoras e na produção de commodities, as atividades mais adaptadas a esse ambiente. Não importa saber que uma reversão do ciclo internacional nos imporá altíssimo preço, como já impôs no passado. Essas são questões do futuro, um tempo em que os especuladores de hoje não estarão mais aqui.
Recebemos de presente uma maçã envenenada. Uma herança maldita está a caminho.
Publicado originalmente na Folha de São Paulo de 03/05/08
Texto de CESAR BENJAMIN , 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006).
Nenhum comentário:
Postar um comentário