Desde 2005, quando se delineou com clareza um ciclo de valorização do real relativamente ao dólar, o Banco Central (BC) desempenha um dos papéis mais fáceis da política macroeconômica brasileira. No seu trabalho usual, procura controlar a inflação via taxa básica de juros, sem nenhuma preocupação com as seqüelas indesejáveis do que faz. Desde então, entretanto, teve enorme ajuda de importadores estrangeiros e exportadores brasileiros, aqueles aumentando fortemente sua demanda de produtos do Brasil e estes atendendo a essa procura. Com superávits crescentes nas principais contas externas nacionais, o real valorizou-se (ou o dólar ficou mais barato na nossa moeda), o que teve efeito crucial no controle da inflação, pois preços de produtos transacionados com o exterior se tornaram mais baratos em reais.
Apesar do papel desses muitos outros atores, sintetizado na taxa de câmbio, nosso BC sempre se atribuiu o mérito maior pela redução da inflação. É verdade que mesmo em queda a taxa de juros fixada pelo BC se manteve ainda muito elevada em termos reais, ficando sempre no primeiro ou no segundo lugar no campeonato mundial de taxas desse tipo. Isso também contribuiu para a queda da taxa cambial e da inflação, ao atrair mais dólares para o País em busca de remuneração tão vantajosa.
Contudo, mesmo com os dólares atraídos pelos juros elevados, a preocupação de quem os traz é a de ver garantida a saída de seu dinheiro se a qualquer momento optar por esse caminho. Assim, o fluxo financeiro não ocorreria com a mesma intensidade se as contas externas brasileiras não houvessem passado pelo conserto que veio do comércio exterior e de seus múltiplos atores, que, assim, foram os mais importantes.
Não obstante, tudo se passa como se o BC levasse um Oscar pelo que fez na versão cinematográfica desse enredo, ainda que o mérito maior seja o desses outros atores. Uma das razões é que, além de um papel mais facilmente identificável, o BC tem grande presença na mídia com as freqüentes reuniões em que decide a taxa de juros, e conta também com o aplauso mutuamente conveniente da influente torcida financeira que veste sua camisa.
Entretanto, desde o segundo semestre de 2007 se iniciou um novo enredo, com novos atores e uma troca de papéis que tornou mais difícil, ou pelo menos não tão fácil, o trabalho do BC. Essa mudança se acentuou a partir do mês passado.
Naquele semestre, a inflação mudou de altitude, deixando o nível de 3% ao ano e se aproximando de 4,5%. Esta última taxa, apesar de ser apenas o centro do intervalo que o BC tem como meta, na prática é tida por ele como o limite superior desse intervalo, incomodando quando alcançado e levando a reações como a recente, de aumento dos juros.
De início, a culpa foi atribuída principalmente ao preço de alimentos, com destaque para o leite e, mais recentemente, o feijão, afetados internamente por problemas de entressafra, na época tidos como transitórios. No primeiro trimestre deste ano a inflação deu sinais de retrocesso, mas em abril índices importantes como o IPCA-15 e o IGP-M mostraram novo agravamento. Mais uma vez, com destaque para os preços dos alimentos, agora particularmente o trigo e o arroz, que ao contrário do feijão são claramente produtos transacionados com o exterior.
Ora, os preços do trigo, do arroz e de outros alimentos subiram em face de um fenômeno mundial, a escassez da oferta de alimentos relativamente a uma demanda em forte expansão, e tudo indica que se trata de algo mais permanente. Esses preços também foram agravados por maiores custos de transporte, de fertilizantes e de agrotóxicos, fortemente influenciados pelos preços do petróleo e seus sucessivos recordes.
Assim, nessa sua nova roupagem, internacional, da "inflação de alimentos", o processo inflacionário se mostrará resistente a medidas (como o aumento dos juros) e outros desdobramentos internos (como a superação de períodos de entressafra), dificultando a ação do Banco Central.
Tal ação será ainda mais problemática se os preços da gasolina e do óleo diesel no Brasil forem reajustados para aproximá-los dos internacionais, conforme pretende a Petrobrás. E, agravando ainda mais o quadro, na esteira da valorização do real, as contas externas brasileiras começaram um ciclo de deterioração que poderá excluir de cena ou reduzir fortemente o enorme papel que a taxa de câmbio desempenhava no arrefecimento de pressões inflacionárias.
Tudo isso reduz a probabilidade de que o recente aumento de 0,5 ponto porcentual na taxa básica de juros seja de fato o que o BC chamou de "parte substancial" do ajuste total que pretende fazer nessa taxa, pois nessas condições esse ajuste poderá ter maior amplitude e se prolongar por mais tempo.
Entretanto, não vejo nisso o pior cenário, mas o melhor, pois ele tornaria mais evidente, e, assim, com maiores perspectivas de solução, a enorme dificuldade de que padecem o efetivo controle da inflação no Brasil e a necessidade de reduzir sua taxa básica de juros. Ou seja, a omissão de um ator que poderia desempenhar papel fundamental, o governo central, o qual continua atuando na direção contrária, expandindo fortemente seus gastos de custeio e contribuindo para o aquecimento da demanda.
Enquanto isso, o ministro Guido Mantega, da Fazenda, disse que, "tirando o feijãozinho que todo o mundo come...", a inflação seria menor. Ora, não dá para tirar o feijão, nem o arroz, o milho, a soja e outros produtos que todo mundo come, direta ou indiretamente. Na cozinha da política econômica, o que o governo precisa fazer mesmo é reduzir o fogo com que esquenta a inflação e os juros da economia.
Texto de Roberto Macedo, economista (USP), doutor pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda
Fonte O Estado de São Paulo de 01/05/08
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080501/not_imp165880,0.php
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