domingo, 23 de agosto de 2009

Se você estiver com dor de dente

Se você estiver com dor de dente, qual a chance de passar do primeiro parágrafo?
Pergunta um tanto estúpida, provavelmente, nenhuma

ESSA É UMA das notícias mais devastadoras para o Brasil.

Entre fevereiro e julho deste ano, dez equipes de pediatria e 15 de saúde bucal examinaram 119.850 alunos
de escolas públicas e descobriram que a maioria deles tinha pelo menos um problema capaz de dificultar o aprendizado.
O documento, inédito, é mais grave de que parece. Os exames ocorreram apenas em crianças da cidade de São Paulo. Imagine o resto do país. É, de longe, um dos maiores escândalos de saúde dos brasileiros.
Suponha que, ao começar a ler esta coluna, você seja acometido subitamente de uma dor de dente.
Qual a chance de passar do primeiro parágrafo? Pergunta um tanto estúpida- provavelmente, nenhuma chance. Das crianças que passaram por exame bucal, 35% apresentaram alto risco de cárie -lembremos, de novo, que estamos falando de São Paulo, onde a água é encanada e, em geral, tem flúor.
Entende-se, assim, estudo publicado pela Universidade de Santa Catarina, a partir de dados do Ministério da Saúde: cerca de 40% dos brasileiros entre 15 e 19 anos já perderam um dente por causa de uma cárie. Isso significa que, para chegar a esse ponto, tiveram de passar um bom tempo com dor de dente.
A boca nem de longe é o caso mais grave.

Os dados são baseados em relatório, ainda reservado, do programa "Aprendendo com a Saúde", realizado na cidade de São Paulo, onde médicos e dentistas passam pelas escolas e fazem os encaminhamentos para a rede de saúde.
Dos examinados, 7% foram encaminhados para psicólogos, por demonstrarem distúrbios de comportamento; 12%, a fonoaudiólogos; 15%, a oftalmologistas; 18%, a otorrinos; 13%, a endocrinologistas. É gente que não enxerga, fala, ouve ou respira direito -além de sofrer com sobrepeso ou desnutrição.
Criador de uma rede de dentistas que atende gratuitamente, Fábio Bibancos constata que, com a questão bucal, aparecem problemas da fala, audição, digestão e autoestima, que se traduzem em notas ruins, evasão, indisciplina, violência. Daí ele defender que pasta de dente e escova seja entregue em posto de saúde - assim como a camisinha.
Bibancos aprendeu como muitos de seus pacientes ficam curvados por causa da boca: "Eles sempre ficam olhando para baixo, não querem encarar as pessoas, com vergonha dos dentes, e a postura, com o tempo, vai mudando."


Já existem algumas iniciativas (os programas federais Saúde na Escola e Brasil Sorridente, por exemplo), mas são tímidas para o tamanho da tragédia. Mesmo quando há recursos, existem desperdícios. O governo federal enviou para as prefeituras kits para exames médicos, mas muitos prefeitos deixaram o material fechado.
O projeto "Aprendendo com a Saúde", de São Paulo, é considerado um modelo, por fazer o exame e, ato contínuo, o encaminhamento, o que exigiu a montagem de um cadastro especial -aliás, considero a iniciativa mais inovadora de toda a gestão Kassab. Mas, por enquanto, limitada aos alunos da pré-escola.


Há uma crescente convergência no país sobre o que fazer para melhorar a educação: formar os professores e melhorar seus salários, premiar o mérito, treinar os diretores em gestão, aproximar o currículo do cotidiano, envolver pais e comunidade, trabalhar com metas, aprimorar as avaliações, estimular a leitura o mais cedo possível, aumentar a jornada de trabalho, oferecer reforços permanentes etc.
Um sinal da nossa ignorância coletiva é a saúde mental e psicológica dos estudantes nem remotamente estar incluída no topo dessa agenda.
Seria muito mais eficiente (e justo) avaliar antes a saúde das crianças e dos adolescentes do que o que eles sabem de português e matemática.
Não é á toa que tantos professores ficam tão doentes.


Ou você acha que o leitor com dor de dente conseguiu chegar até o final desta coluna?

PS - A Secretaria da Saúde da cidade de São Paulo está preparando uma medida que vai dar polêmica.
Mas vale a pena prestar atenção.
Além de construir centros odontológicos (as prometidas AMAs Sorriso, cuja versão federal são os Centros de Especialidades Odontológicas), é preciso credenciar dentistas privados que prestariam serviços em seus consultórios.
Um mapeamento mostrou que, em todas as regiões da cidade, existem dentistas. Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) mais detalhes sobre os exames médicos nas escolas de São Paulo.

gdimen@uol.com.br

Texto de Gilberto Dimenstein na Folha de São Paulo de 22/08/09

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