segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A única oposição


Baptistão
Tenho lido e ouvido muitos argumentos sobre a corrupção e desfaçatez da política brasileira que podem cair na mesma paralisia que condenam. É verdade que ver a absolvição de Sarney por seus colegas graças às manobras lulistas soa como o último prego no caixão da moribunda vida pública brasileira, além de perfurar as remanescentes alegações de que o PT é um partido com ética e programa (como tantos articulistas escreveram durante tantos anos e alguns até agora não querem enxergar ou então se comportam como traídos); e é verdade que, como eu disse recentemente, o PSDB segue nulo, sem moral nenhuma para se opor aos descalabros, porque também sempre cevou as oligarquias e porque nomes como Eduardo Azeredo, Arthur Virgilio e Yeda Crusius esbanjam semelhanças, para dizer o mínimo. Mas ignorar as perspectivas e nuances não ajuda nada. Ou sabemos o que não queremos ou nos restará assistir ao velório.
O argumento mais comum, baseado nas evidências mais plausíveis, diz que todos os políticos são corruptos e, portanto, não faz diferença quem esteja lá. Em contraposição, há a frase do grande Eça de Queirós que tem circulado pelos emails: “Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente, e pela mesma razão.” Se essa frequência será de quatro, cinco ou seis anos, e se com uma, nenhuma ou duas chances de reeleição, cada país fará seus testes. Só não tem sentido ficar mais que meia dúzia de anos sem abrir opção real de mudança – a qual certamente não é a do plebiscito periódico que certos autoritários latino-americanos oferecem em sistema quase monopartidário. A premissa da democracia não pode ir parar na mesma vala comum da rejeição.
Outro argumento vulgar é o de que “corrupção existe em todo lugar”, inclusive nos países mais ricos como EUA e Japão. Há um desdobramento um pouco mais sofisticado que chamo de argumento “italiano”: como na terra de Berlusconi, cujo problema não são os bacanais domésticos e sim a sacanagem que faz com as leis e os adversários, no Brasil poderíamos ter uma economia desenvolvida mesmo que a máquina pública seja instável, corroída, obscura. Bem, primeiro é preciso lembrar: o que não existe em outros lugares mais desenvolvidos é essa impunidade, essa tolerância à corrupção, essa cultura contaminada em todas as classes e regiões pela formação paternalista ou antiliberal. Aqui a corrupção não procura brechas: ela dá liga a todo o sistema. Segundo, apenas a ignorância ou a má-fé podem pôr de lado a história antiga e conflituosa da sociedade italiana – onde a cultura de mercado brotou, como mostraram autores como Tocqueville e Trevor-Roper – e seus avanços institucionais.
Há um terceiro argumento, também razoável sob vários ângulos, que deriva dos dois anteriores. Diz que a sociedade brasileira não pode apontar o dedo para seus representantes porque a maioria de sua população também é dada à contravenção, muitas vezes chamada de “jeitinho” (os diminutivos eram indispensáveis nos costumes da casa grande) – desde a propina na porta do estádio de futebol até a sonegação assumida de empresários e latifundiários, desde a “caixinha” para o guarda ou fiscal até a mancomunagem na hora da licitação. Acontece que, mais uma vez, apontar o dedo para seus representantes é uma prerrogativa da sociedade democrática, por mais desigual que seja essa sociedade e por mais imatura que seja sua democracia. Afinal, eles são pagos por nós. E há muitas, muitas pessoas e empresas que são mais corretas e comprometidas do que a politicalha.
Não estou falando apenas que as autoridades, sendo líderes (em tese), são obrigadas a dar o exemplo, como Creonte. Exigir moralidade não é udenismo ou pequeno-burguesismo, ou não deveria ser. É uma parte fundamental daquilo que define uma democracia republicana: a possibilidade de controlar o poder, de monitorá-lo e limitá-lo, por meio de imprensa livre, direitos de cidadania, associações e instituições independentes, e não só de escolhas eleitorais (tanto é que na maioria dos países o voto não é obrigatório). O estado precário dessa rede de vigilância se vê no debate nacional, dividido entre os ufanistas do “país do futuro” e os narcisistas do “isto não tem jeito”, muitas vezes encarnados na mesma pessoa; e sobretudo na incapacidade de pressionar a sério a classe política. Pesquisa do Datafolha, realizada mais de dois meses depois das primeiras denúncias, mostrou que 74% querem que Sarney deixe o cargo; alguns protestos surgiram em ruas e internet; a OAB entrou com representação. Mas Sarney continua. Faltou alguém de dentro gritar “Sai daí, Zé”?
Outro sinal dessa precariedade está na reação à mera menção da palavra “reforma”, especialmente a política. Sempre se invoca a ideia quando a crise está aguda, mas aí vem muita gente – inclusive os que se dizem social-democratas, conceito que implica necessariamente o de reforma – e alega que não dá para fazer tudo, que são muitas coisas e param o país, o Congresso, etc. Ok, então vamos nos concentrar em medidas pontuais que sejam, ora, pontos de virada: 1) Mudar o sistema de suplentes. Que um terço dos representantes não tenha tido votos para estar lá gera uma bagunça de dar inveja a qualquer italiano; 2) Examinar a fundo a proposta de Luiza Erundina de impedir que meios de comunicação – como os jornais regionais de famílias como Sarney, Magalhães, Collor e tantas mais – sejam dominados por políticos; 3) Criar súmula vinculante para impedir decisões de primeiras instâncias que ferem direitos constitucionais, movidas por interesses de compadrio.
Com isso, e fazendo valer as regras já existentes como a proibição ao nepotismo e a fidelidade partidária, se começaria a desmontar uma estrutura arcaica. Precisamos reduzir o poder dos Sarneys e não de pessoas como Gabeira, que cometeu erros e deve pagar por eles, mas que não é um Sarney. É claro que eu, por minhas inclinações pessoais, gostaria de ir mais longe e mudar o sistema partidário, quiçá reduzindo a três legendas (para não ficar no binarismo anglo-saxão); corrigir a proporção representativa (se o Senado serve para o equilíbrio federativo, por que a Câmara privilegia tanto os estados menos desenvolvidos?); adotar o voto facultativo, cancelando também a propaganda partidária gratuita fora de período eleitoral. Mas é preciso trabalhar no terreno do possível. Ou a lama nos enterra.
Texto de Daniel Pizza em O Estado de São Paulo de 24/08/09

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