terça-feira, 23 de outubro de 2007

Paradoxo da fome

A fome resiste à modernidade. Segundo a FAO, a agência de alimentação da ONU, 850 milhões de pessoas sofrem a privação de comida na mesa. Qual a razão desse drama insuportável?

A análise histórica permite descobrir que as causas da fome se tornaram complexas após a industrialização da sociedade mundial. Antes, na sociedade antiga, a fartura dependia das regras da natureza. Quando chovia bem, garantido estava o celeiro. Se viesse a seca, faltava o pão. Imperava a agricultura de subsistência e o excedente, pequeno, alimentava a nobreza perdulária.

Tempos difíceis acometeram o povo no início do capitalismo europeu. Transformadas em operários, as massas campesinas viram desagregar-se a velha ordem. A crise provocou insuficiência da produção rural. Juntou a fome com a vontade de comer. Talvez tenha sido exatamente essa tragédia que, ao baratear a mão-de-obra, facilitou a vitória do capitalismo. Com a urbanização, rompeu-se o liame entre a moradia e a garantia alimentar. As cidades abriram um fosso entre a produção rural e o consumo doméstico.

O raciocínio fácil põe a culpa da fome nas costas da agricultura. Mas a análise histórica mostra que a insuficiência da produção de alimentos sempre esteve associada a outros problemas. Guerras, inclusive. Na atualidade, essa conjunção entre a fragilidade da agricultura e os conflitos bloqueia o abastecimento popular na África.

A mais famosa suposição sobre a origem da fome diz respeito ao crescimento demográfico. A explosão demográfica assusta, há séculos, os estudiosos. Não é para menos. Os números impressionam qualquer leigo. Em 1650, a população da Terra era suposta em 500 milhões de pessoas. Duzentos anos depois, em 1850, dobrava para 1 bilhão de almas.

O inglês Thomas Malthus elaborou sua teoria demográfica nessa época. Em seu famoso Ensaio sobre a População, de 1798, sentenciou que a população crescia em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos aumentaria em progressão aritmética. O terrível descompasso parecia inevitável.

A História, porém, desmentiu Malthus. Em que pese a crescente multiplicação humana, o avanço da tecnologia permitiu fortes ganhos de produtividade na exploração da terra, elevando o nível das colheitas. As fronteiras da agricultura se expandiram, sustentando o crescimento populacional. A ampliação do comércio entre as nações facilitou a oferta de comida em regiões distantes.

A população continuou sua acelerada marcha. Em 1930, passados apenas 80 anos do primeiro bilhão, novamente os habitantes da Terra duplicavam, alcançando 2 bilhões de pessoas. Mais 45 anos e, em 1975, já eram 4 bilhões de pessoas. Hoje passam de 6,5 bilhões.

A produção rural, de forma até surpreendente, agüentou o tranco. O pior havia passado. A partir da segunda metade do século passado, a queda na taxa de natalidade da população começou a fazer diferença. O Velho Mundo equilibrou, em termos, sua população. Os EUA o seguiram. Na América Latina e na Ásia demorou, mas a redução progressiva da natalidade nos países em desenvolvimento significou a pá de cal na hipótese malthusiana.

Conforme ensina Joelmir Beting, porém, na prática a teoria é outra. A despeito do aumento da produtividade no campo e da redução do crescimento populacional, a fome persiste angustiando a cidadania. Os economistas descobriram, nessa jornada da humanidade, que o fator determinante da fome reside não na produção, mas na distribuição da comida.

Na economia monetária, é a renda das famílias que estabelece o nível de consumo da sociedade. Sem dinheiro no bolso, mesmo havendo oferta farta, pessoas, crianças principalmente, padecem de subnutrição. A desigualdade social, melhor que a falta de alimento, explica a terrível privação humana.

Hoje, ainda 52,4 milhões de pessoas enfrentam a subnutrição na América Latina e no Caribe. Segundo os dados da FAO, representam 10% da população. A situação mais grave está na América Central, onde o número total de pessoas com fome subiu, nos últimos 12 anos, de 5 milhões para 7,5 milhões. Já a América do Sul conseguiu baixar o número de seus famintos de 42 milhões para 35 milhões, caindo de 14% para 9% da população total. Menos mal.

Em artigo publicado em 16 deste mês, Dia Mundial da Alimentação, José Graziano, representante da FAO no Chile, atesta que apenas o Haiti produz menos alimentos do que necessita para suprir seu povo. Na média, a América Latina e o Caribe produzem 31% a mais; no Brasil, o excedente, sobre a necessidade básica, é de 41%.

É claro que a exportação explica boa parte desse paradoxo. O Brasil tornou-se o maior exportador mundial de alimentos, somando a soja, as carnes, o açúcar, o suco de laranja, entre tantos componentes da balança comercial do agronegócio. Sabe-se, também, existir muito desperdício de alimentos, como no consumo das hortaliças.

De qualquer forma, é tristemente curioso perceber que existe excedente de comida numa sociedade em que perambulam milhões de famintos. Mas imaginar reduzir as vendas externas, como política para vencer a fome, piora a questão. Pois são exatamente as vendas externas que puxam o dinamismo da economia interiorana.

A receita mais segura para salvar o povo faminto está mesmo na geração de empregos, salário no bolso. Os agricultores, antes como agora, têm dado conta do recado. Mas as injustiças sociais, criadas historicamente, se perpetuam nos gabinetes da cidade. Esse é o pior flagelo.

Texto de Xico Graziano, agrônomo, é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xico@xicograziano.com.br
Site: www.xicograziano.com.br

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