Atenção e apoio a quem sofreu com crimes violentos diminuem quando outro caso de violência ocupa o noticiário
"A fábrica dos ovos de ouro fechou", diz vítima de bala perdida; para pai de Liana Friedenbach, assédio é uma "ajuda terapêutica"
O governador José Serra integra a extensa lista de personalidades e voluntários desconhecidos que estiveram no hospital Alvorada em fevereiro para visitar a garota Priscila Aprígio da Silva, 14, paraplégica depois de receber uma bala perdida num assalto a banco em Moema (zona sul de SP).
Filha de um sapateiro desempregado e de uma diarista, três irmãos, Priscila foi capa naquela semana de todos os jornais do país, recebeu telefonemas de correspondentes internacionais e apareceu nos programas vespertinos de TV.
Na época, o cotidiano da família Aprígio sofreu um repentino "upgrade". Gente ligava dos EUA se dispondo a enviar "roupas americanas", outros apareciam no hospital oferecendo docinhos, emprego, carro para familiares. "Aproveitei para pedir tudo o que queria. Conheci o pessoal do São Paulo (Futebol Clube), eles me batizaram. Mas muitas promessas eu não pude cobrar porque, na confusão, perdi os papeizinhos onde anotava os telefones."
Menos de quatro meses depois, em junho, ela constatava: "A fama acabou. Sabia que eu ia falir. A fábrica dos ovos de ouro fechou", disse à Folha.
Cerca de 43 mil pessoas por ano são vítimas de crimes violentos intencionais no Brasil, segundo dados de 2006 do Ministério da Justiça. Apesar dos índices de criminalidade, apenas alguns episódios de violência recebem atenção extra da mídia -ou por causa do grau inédito de barbaridade, ou pela falta de concorrente à altura no noticiário, ou, ainda, dependendo da classe social dos envolvidos (quanto mais ricos, mais chocante parece ser) e do local em que ocorrem.
Abalados emocionalmente, os parentes das vítimas são pegos de surpresa pelo incrível assédio. Subitamente, eles se vêem rodeados de repórteres, holofotes, microfones, voluntários dispostos a ajudar e, também, de oportunistas.
Euforia e depressão
"É muita gente querendo se promover com a desgraça dos outros. Teve um canal de TV que apareceu no hospital e, sem autorização, carregou a Priscila no carro para uma entrevista no estúdio", diz Linamara Battistella, diretora executiva da divisão de medicina de reabilitação do Hospital das Clínicas, onde Priscila faz fisioterapia.
"Eu dizia aos repórteres que tinha 500 pacientes vítimas de balas perdidas. Mas eles só queriam a Priscila, certamente por causa do CEP onde tudo ocorreu", acredita Linamara.
A fama de Priscila ainda teve uma sobrevida recente, no "Jornal Nacional", quando há cerca de dois meses uma clínica de Campinas acenou com a possibilidade de a menina voltar a andar. Linamara diz que, passado o momento de euforia, veio a depressão. "Do ponto de vista da reabilitação, a Priscila vai muito bem, mas, psicologicamente, essa matéria da clínica só atrapalhou", avalia.
A história recente tem mostrado que, em casos de crimes superexpostos, logo apagam-se os holofotes, recolhem-se os microfones. Boa parte da atenção dispensada aos familiares se desvanece. Qual a sensação?
"Passado o primeiro momento, em que a gente corre o risco de virar celebridade, vem a ressaca", diz o advogado Ari Friedenbach, 46, pai de Liana Friedenbach, a adolescente de 16 seviciada e morta há três anos, com o namorado, Felipe Caffé, 19, em um lugar ermo no Embu-Guaçu (Grande São Paulo).
Friedenbach diz que "o que você vai fazer com os seus 15 minutos de fama, no momento da revolta, é uma decisão sua". "Eu nunca me posicionei publicamente como um maluco raivoso, e acho que assim ajudei muito as pessoas", diz ele, que chegou a fundar uma ONG, mas não foi adiante.
O advogado conta que se surpreendeu com "a maneira muito natural" com que lidou com a mídia. "É como se eu tivesse nascido filho da Xuxa", diz.
Até hoje ele dá palestras e entrevistas em programas de TV pelo Brasil afora. "Tudo isso, sem dúvida, massageia o ego, é de uma ajuda terapêutica inegável. Sempre que vejo o feedback de uma entrevista dou os parabéns ao repórter."
Não é raro que os familiares da vítima sucumbam ao mutirão da ajuda, apoiando-se psicologicamente naquilo que parece ser a única possibilidade de apaziguamento da angústia.
"Eles estão no foco da solidariedade, muito abalados, nem sempre conseguem resistir a esse "ganho secundário'", diz a psicóloga Maria Helena Franco, coordenadora do laboratório do luto da PUC-SP.
Por vezes, diz Maria Helena, a dor leva os familiares a se engajar em manifestações pela paz, até mesmo na tentativa de encontrar um significado para a experiência ruim. "Farei tudo o que estiver ao meu alcance para lutar contra a violência. A mídia é superimportante para chamar a atenção dos governantes a respeito do problema da segurança", diz a comerciante Rosa Vieitas, 41, que não se arrepende de ter aparecido na novela "Páginas da Vida", da TV Globo, falando de sua trágica experiência pessoal. Seu filho, João Hélio, 6, foi brutalmente arrastado pelas ruas do Rio em um assalto ao carro da família.
Rosa e o marido, Edson, 41, afirmam que sempre tiveram a preocupação de não servir a outros interesses além da divulgação do combate à violência.
"Você nunca nos viu em um desses programas sensacionalistas da tarde. Filtramos o máximo, para só aparecer naquilo que realmente fosse transmitir nossos apelos de paz", explica o pai do menino.
Espécie de paradigma máximo da barbárie, o crime que resultou na morte de João Hélio foi tão explorado que o casal teve de pedir à Telemar para não divulgar mais o seu telefone.
Passados quatro meses, em junho, o casal não conseguiu reunir dez pessoas em uma manifestação do movimento "Rio Unido contra a Violência", em uma praça de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ninguém da imprensa.
É comum acontecer: nos meses que se seguem ao crime, por pior que ele seja, fala-se cada vez menos do assunto até cair no esquecimento. Isso porque, na semana seguinte, ou na outra, enfim, muito rapidamente, uma nova atrocidade substitui aquela -na última semana, dois irmãos foram abusados e mortos na zona norte de SP.
De acordo com a psicóloga Maria Helena Franco, da PUC, "o luto é uma experiência pública e privada". "As pessoas esperam reações dos sobreviventes, contam-se as lágrimas. Quando o caso aparece no noticiário, essas expectativas podem aumentar. Mas, por mais que se chore diante das câmeras, uma hora a pessoa vai ter de voltar para casa e entrar em contato consigo mesma."
Faustão e Gugu
Foi assim com o cavalariço Alexandre Magno, 30, viúvo da professora Geísa Gonçalves, mantida como refém e depois assassinada no sequestro ao ônibus 174, em 2000, no Rio.
"Mais "de uns 100" jornalistas estavam me esperando no IML. Cheguei meio zonzo, dopado, com uma calça e uma camisa comuns, eles não sabiam nem quem eu era. Aí, alguém gritou meu nome, e eles avançaram pra cima de mim. Chorei porque a situação me levou a isso, era desespero, pressão. Depois, em casa, éramos só eu e Deus."
Magno lembra: "O governador (Antony Garotinho, PMDB-RJ) estava em campanha e disponibilizaram até jatinho para enterrar minha mulher em Recife (onde nasceu)".
Ele mora no mesmo barraco de 20 m2 da favela Rocinha (zona sul do RJ); diz que não quis "nada de ninguém": "Falei muito na TV, para ver se ajudava no processo de indenização que o Ministério Público move contra o Estado, mas não adiantou. Fui chamado para uma audiência em 2003, não sei nem em que instância está. Estive no Faustão, Gugu, Olga Bongiovani, Sônia Abrão, Leão Lobo, agora não falo mais".
Traumatizado com a superexposição, ele hoje foge da imprensa (no Jóquei do Rio, onde trabalha há quase dez anos, o telefonista diz à Folha que não há ninguém ali com aquele nome; quem faz a ponte para convencê-lo a dar a entrevista é a atual mulher dele, Eliana).
Amargo com as perdas jamais reparadas, o cavalariço, que ganha um salário "na faixa do mínimo", resume assim sua descrença no Brasil: "Não bebo, não fumo, não uso droga, não roubo... Não existo".
Reportagem de Paulo Sampaio na Folha de São Paulo de 01/10/2007
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