Orlando Villas Bôas, com seu jeito exuberante, gostava de falar da sofisticação das culturas indígenas do Xingu, que a nossa civilização nem chega a perceber. E dava como exemplo que um homem ali não estivesse satisfeito com sua esposa, porque ela não estava trazendo água limpa para casa; ou a mulher não estivesse contente com o marido, porque ele não vinha plantando a mandioca necessária. Qualquer um dos dois poderia tomar a iniciativa de separar-se, seria livre para isso e não haveria sanção social. Mas, se nenhum dos dois quisesse separar-se, não lhes passaria pela cabeça queixar-se diretamente ao parceiro - porque isso implicaria que tinha direito de queixa, isto é, direito de exigir este ou aquele comportamento do parceiro; e esse direito não existe no Xingu. O máximo que qualquer um dos dois poderia fazer seria contar o problema aos homens mais velhos. Estes reuniriam toda a aldeia e explicariam por que, na história daquele povo, houvera tal divisão do trabalho e, nesse arranjo, era tarefa da mulher buscar água limpa e tarefa do homem plantar mandioca. Quem quisesse que botasse a carapuça. Ou não.
Terminada a narrativa, Orlando falava de outras sofisticações xinguanas que não percebemos: a organização social e política em que não há delegação de poder, o chefe não dá ordens - é o mais experiente, o que mais conhece a cultura de seu povo, o grande mediador de conflitos, mas não dá ordens, nem ele nem ninguém. Ou a auto-suficiência no nível pessoal: cada um sabe fazer tudo de que precisa para viver (construir a casa, seus objetos de trabalho, plantar e colher, caçar e pescar, identificar espécies úteis). Um luxo: nascer e morrer sem nunca receber uma ordem ou depender de alguém.
Pois são essas sofisticadas culturas do Xingu que se consideram ameaçadas, numa carta aberta que nove delas endereçaram há pouco “à nação brasileira”. Protestam contra a construção de hidrelétricas nos rios formadores do Xingu (que nascem fora do Parque Indígena), contra a derrubada de 300 mil hectares de matas ciliares e o “uso descontrolado de agrotóxicos” na região das cabeceiras do rio. Pedem a paralisação imediata dos projetos de hidrelétricas (são nove previstas, duas já em andamento), a preservação de seus lugares sagrados fora do Parque Indígena e um estudo sobre os danos aos peixes, fundamentais em sua alimentação.
Não são apenas os xinguanos que estão aflitos. Os ianomâmis estão mandando uma delegação à Europa (Estado, 9/10) para denunciar a situação em que vivem, com invasores da área Raposa Serra do Sol se recusando a sair, apesar de decisões judiciais; outros índios, obrigados a trabalhar como bóias-frias em plantações de cana, fora da reserva. Vão falar também dos guaranis-caiovás, de Mato Grosso, onde já foram mortos 27 deles, este ano, e outros 21 se suicidaram por enforcamento (183 suicídios por enforcamento em cinco anos).
No lançamento da Agenda Social dos Povos Indígenas, em São Gabriel da Cachoeira (AM), há poucas semanas, o presidente da República ouviu duras críticas dos índios, principalmente ao projeto, em tramitação no Congresso, que regulamenta a extração de minérios em áreas indígenas. Ouviu também muitas referências à Declaração Internacional dos Direitos Indígenas, aprovada poucos dias antes pela Assembléia-Geral da ONU, que proíbe discriminação contra eles e reconhece seu direito à autodeterminação dentro de seu território.
Mas é muito difícil avançar nesse terreno, cercado de conceitos e preconceitos que colidem com a visão de mundo dos índios. Como preocupar-se com que o Parque Indígena do Xingu seja uma ilha de vegetação e recursos hídricos preservados, cercada por pastagens e culturas de grãos que removeram a vegetação, se a visão de crescimento econômico prevalecente na região é a que consagra a expansão da área produtiva a qualquer preço? Como preocupar-se com hidrelétricas, ameaça aos peixes, assoreamento, perda de lugares sagrados, sem sequer discutir a necessidade real dessas novas unidades, sem discutir a possibilidade (como fez estudo da Unicamp) de reduzir em até 30% o consumo nacional de energia com programas de conservação e eficiência? Como avançar para uma direção correta sem considerar o estudo do arqueólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida, que prova a existência no Xingu, há mais de dez séculos, de uma sociedade “altamente complexa”, que aponta em direção a algumas das utopias humanas?
O presidente da Fundação Nacional do Índio, Márcio Meira, tem dito que “o Brasil não pode pensar no agronegócio como solução para tudo” (entrevista a Pedro Biondi, da Agência Brasil, 1º/8). Os recursos naturais “não são infinitos”, diz ele. Precisamos cuidar deles. E os índios têm um papel importante nisso: 23% da Amazônia está em terras indígenas, 13% do território nacional. E essas áreas se têm mostrado o caminho mais eficaz para a conservação da biodiversidade.
Volta-se sempre à mesma questão: se recursos e serviços naturais são hoje o fator escasso no mundo, precisam ser colocados no centro de nossa estratégia nacional. Temos território continental, sol o ano todo, 12% do fluxo hídrico global, entre 15% e 20% da biodiversidade total, a possibilidade de matriz energética limpa, com fontes renováveis (eólica, solar, marés, biocombustíveis). É um privilégio que nos pode assegurar um lugar de destaque no mundo.
E, nesse caso, por que não juntar esforços dos Ministérios da Cultura e do Meio Ambiente, da Funai, do Patrimônio Histórico e de outras instituições (como o Instituto Socioambiental, que já trabalha na área) num projeto de reconhecimento, com a Unesco, do Parque Indígena do Xingu como patrimônio histórico, cultural e ambiental da humanidade? A partir daí, certamente se delineariam caminhos eficazes para a preservação de uma área tão decisiva.
Texto de Washington Novaes no Estado de São Paulo de 19/10/07
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