domingo, 30 de agosto de 2009
Lei 12.015 - Nova lei de crimes sexuais
A lei 12015/09, em vigor desde o início de agosto, promoveu alterações significativas no diploma substantivo penal, no que tange aos delitos de natureza costumeira.
E sobre elas vamos falar agora, porém, não é possível olvidar, que o Legislativo falhou ao não tipificar o crime de pedofilia, delito que assola de forma constante a sociedade brasileira, e, face à diversidade e amplitude dos meios de comunicação, expansão da internet e inclusão a digital, vem tomando grande vulto junto aos meios sociais.
A despeito da oportunidade perdida, a nova lei trouxe alterações que endurecem a punição a delitos de natureza sexual.
Iniciando pelo artigo 213, do Código Penal, definindo o crime de estupro,cuja redação anterior dizia: "“Constranger mulher à conjungação carnal, mediante violência ou grave ameaça".”
Pena de reclusão de 6 a 10 anos.
Atualmente, a nova redação define:
“Constranger alguém , mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Observa-se que o crime de Estupro tomou amplitude, ao ter em sua redação substituída a palavra “mulher” por “alguém”, de forma que homens também podem, doravante, ser vítimas do crime de estupro.
Anteriormente, homens, ou indivíduos do sexo masculino,submetidos a cópula anal forçada, sofriam atentado violento ao pudor, cuja pena era a mesma prevista para o delito de estupro.
É pacífico considerar que homens homossexuais, travestis, profissionais do sexo às ruas, também tornam-se indivíduos passíveis de ser vitimizados pela agressão definida pela nova capitulação legal de estupro.
Observando, ainda, à nova capitulação do artigo 213, o legislador cuidou de acrescentar-lhe dois parágrafos, segundo os quais, há a previsão de aumento de pena, se da agressão preliminar resultar à vítima;lesão corporal de natureza grave,ou, a ainda, se aquela for maior de catorze ou menor de dezoitos, casos em que configura-se a violência presumida, e, por fim,há também a previsão de aumento de pena para os casos nos quais, ocorre o resultado morte.
Para as duas primeiras hipóteses, a pena é de reclusão de 8 a 12 anos, para a terceira, de 12 a 30 anos.
É de se observar que desde a redação anterior do Código Penal, de 1940, quando, tão somente mulher honesta” poderia ser vítima de estupro, não contempladas, portanto, as profissionais do sexo, atualmente, a lei denota muito mais lucidez aoampliar o rol de possíveis vítimas.
Considerando, ainda, a possibilidade de progressão de pena, acertou o legislador em endurecer a pena aplicada, uma vez que, a pena anteriormente aplicada, restava praticamente infrutífera, deixando à deriva a resposta social aguardada.
Quanto aos delitos de ‘violação sexual mediante fraude’ e ‘assédio sexual’, as alterações cuidam, também, do indivídio que poderá ser vitimizado, qual seja, “alguém”, bem ainda de endurecimento às penas.
Novidade traz a nova redação dada ao artigo 218, ao definir punição aquele que praticar delito de natureza sexual contra “vulnerável”.
O delito previsto neste caso refere-se a “lascívia de outrem”.
O parágrafo único do artigo 225, traz a inovação sobredita. Mas, é de se observar que surge a razoável dúvida: como definir e aplicar ao sujeito vítima de tal delito a vulnerabilidade?
Quem é vulnerável?
Em texto posterior avaliaremos melhor tal indagação, que, desde logo, cabe salientar, é de natureza subjetiva, o que, leva à outra indagação, quem será o sujeito ativo de tal subjetivade:
O indivíduo ativo ao praticar o ato, a Autoridade Policial ao indiciar, o representante do Ministério Público ao denunciar ou o Juiz, ao aplicar a sanção correspondente?
É de se observar que pela frente hão de vir muitas manifestações jurisprudenciais e doutrinárias acerca do tema que, desde logo, observa-se, por ser de natureza subjetiva, há de de ser objeto de muitas controvérsias.
É a natureza do próprio direito, controverso, subjetivo, discutível, eternamente dinâmico, tal qual a própria sociedade que dele depende para ver suas relações melhor regulamentadas e apaziguadas.
Tornaremos a falar sobre o tema, inclusive acerca das demais mudanças, quanto aos tipos referentes ao lenocício, tráfico de mulheres e demais alterações.
Texto de Fernanda Hanna
Especialmente para o Gosto de Ler.
Publicações simultâneas: Temas de Direito
Publicado no Recanto das Letras em 22/08/2009
Violência Sexual: Quando gritar não é suficiente
De crime contra os costumes, o estupro passou a crime contra a dignidade sexual
A gentileza de Fernando Cortez indignou a jurista Silvia Pimentel. Tanto que, ao lado das pesquisadoras Valéria Pandjiarjian e Ana Lúcia Schritzmeyer, ela decidiu escanear outras cortesias do gênero pelas cinco regiões do Brasil. Diante de 50 decisões de tribunais de Justiça, as três compilaram tudo em livro e confirmaram o seguinte: o crime de estupro era o único do mundo em que a vítima é acusada e considerada culpada da violência praticada contra ela.
Isso foi em 1997. Silvia diz hoje ter vontade de fazer outra pesquisa, mas é bem possível que a essência do problema dispense atualização. Por sua experiência como vice-presidente do Cedaw, Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, organismo da ONU, o estupro continua entre o crime e a cortesia pelos hemisférios afora. Aqui, a lei nº 12.015, do último 7 de agosto, tenta apertar o cinto em torno da violência sexual, acomodando o atentado violento ao pudor sob a premissa do estupro no Código Penal. De crimes autônomos, tornaram-se um só. É por causa dessa mudança que o médico Roger Abdelmassih foi acusado de 56 estupros contra pacientes, e não de 53 atentados ao pudor e 3 estupros.
Uma das criadoras do Conselho Estadual da Condição Feminina, do Estado de São Paulo, fundadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), professora de filosofia do direito da PUC-SP, Silvia se diz uma aprendiz contumaz. A lição mais recente veio da última reunião do Cedaw, em Nova York, da qual é recém-chegada. Ali confirmou que o estupro ainda é estratégia poderosíssima em conflitos armados: "O inimigo acaba com a autoestima da outra parte, as mulheres estupradas perdem a autoestima, seus maridos também, seus pais idem". No âmbito doméstico, ele continua abafado pelas conivências familiares. No meio jurídico, se não for por cortesia, por vezes vigora pelo padrão. "In dubio pro stereotypo", diz Silvia, em frase de sua autoria, que ela aos poucos destrincha na entrevista a seguir.
A lei 12.015 é uma conquista das mulheres na medida em que suprime o atentado violento ao pudor e o inclui no artigo que trata do estupro?
É uma conquista, em primeiro lugar, porque os crimes sexuais deixaram de ser crimes contra os costumes. Até este mês, estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e assédio estavam sob essa rubrica no Código Penal. A minha hipótese é a de que isso acontecia porque o estupro, em especial, é visto como um ato disfuncional da sociedade ofensivo aos seus bons costumes. Daí a veemência e repúdio ao delito em si, havendo o uso de expressões contundentes e desqualificadoras em relação ao estuprador. Contudo, ainda se expressa desrespeito também à parte ofendida, levantando dúvidas quanto às suas declarações e à sua própria moralidade.
O fato de unificar a expressão ‘atentado violento ao pudor’ com o estupro fará diferença quanto ao tratamento da vítima?
Acho que essa unificação responde de imediato a uma crítica quanto à linguagem. No ideário popular, a violência sexual máxima é o estupro. E ele designa mais do que a conjunção carnal com a penetração vaginal. Entendemos também como estupro a penetração anal, por exemplo. Ofende tanto quanto. Nos Estados Unidos, ambos são rape. Na Inglaterra, também.
Por que fazemos diferença aqui?
O direito brasileiro definia assim porque está ligado de uma maneira muito forte à ideologia patriarcal. A legislação penal que vigorou entre nós nos primeiros anos do Brasil foram as ordenações filipinas, e essas expressões todas derivam delas. A ideia de pudor, por exemplo, está intimamente ligada a recato, honestidade, virgindade, defloramento. Antes, cabia ao marido pedir a anulação do casamento caso sua mulher tivesse sido deflorada por outro homem. A questão da virgindade era o ponto alto. O estupro, visto apenas como penetração vaginal, é aquele que de fato compromete essa noção familiar porque a vítima pode perder a virgindade e ainda correr o risco de ficar grávida. Mas a nossa sociedade se transforma, e o direito existe para acompanhá-la. Hoje a palavra "estupro" designa mais do que designava. No artigo 213 da mesma lei, por exemplo, estupro significava "constranger a mulher". Agora é "constranger alguém", pode ser de ambos os sexos.
Nesse mesmo artigo, estende-se também como estupro ‘praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’. De que ato libidinoso se trata aqui?
Se você quer saber se eu acho essa linguagem boa, eu vou dizer que não. Não acho. Primeiro, precisamos ler duas ou três vezes para entender quem é esse "ele". Depois, "ato libidinoso" é muito amplo. No direito, muitas vezes existe indeterminação numa norma legal. Onde está a definição de ato libidinoso? Não está. Já deve existir uma definição por parte dos penalistas para isso, mas não é uma definição legal. Por não estar definida, paira certa vaguedad. Não gosto de traduzir para o português essa vagueza, é estranho demais. Os juristas argentinos, aliás, há muito tempo trabalham bem com esse conceito. De qualquer forma, a linguagem jurídica tem sempre de ser muito comunicativa.
Alguns homens já dizem que um beijo roubado pode torná-lo um criminoso...
Um beijo roubado não vai torná-lo criminoso da noite para o dia, isso não deve ser encarado como estupro. Agora, não podemos nos esquecer do assédio sexual. Nesse sentido, meu projeto vai mais no sentido educativo do que o atual, propondo políticas internas nas empresas para uma atenção maior para o tema. Acho mais rico que trabalhem a questão do que punam. A ideia que temos é de que assédio sexual não é crime, mas é. Para caracterizar assédio sexual ele precisa ser de um superior, e muitos chefes têm esse tipo de procedimento. Eles se valem da relação de poder que têm no ambiente para obter isto ou aquilo em troca de benesses. Não é nada fácil comprovar um assédio sexual. É mais fácil comprovar o estupro, que deixa evidências para o IML.
Antes da lei, podia-se somar as penas de estupro com a de atentado ao pudor. Ou seja, chegaríamos a 20 anos de reclusão máxima, e não a 10. A pena foi, de certa forma, atenuada. Seria uma falha da unificação?
Em termos de Direito Penal, não me preocupo tanto com a quantidade da pena, e sim com uma tipificação clara, com uma penalização razoável e uma punição efetiva. E não estou dizendo, com isso, que os colegas que criticaram esse ponto estejam juridicamente incorretos. Ocorre que, muitas vezes, quando se estabelecia a soma das penas de estupro e atentado violento ao pudor, a pena ficava tão imensa que descaracterizava até o crime.
A senhora mencionou, no início da entrevista, que se levantam dúvidas quanto às declarações da parte ofendida. Isso ainda acontece com frequência?
Existem pesquisas, como a minha, que mostram que a palavra da mulher, especialmente a da mulher adulta, não é levada a sério. Muitos ainda dizem que ela quis ser estuprada ou se insinuou além da conta. Com as crianças, há uma boa vontade por parte dos operadores do direito. Ainda assim, se a boa vontade fosse tão grande, não teríamos uma prostituição de menores do tamanho da que existe no nosso país. Essa prostituição significa estupro reiterado pelos homens que mantêm relações sexuais com menores.
Em relação aos demais poderes, o Judiciário ainda é o mais resistente a essas reivindicações de gênero?
O Judiciário tem sido tradicionalmente apontado como poder conservador. Ao mesmo tempo, é ele, principalmente por meio das suas instâncias primeiras, que está trazendo luz a uma série de temas polêmicos. Um exemplo é a união civil homoafetiva. Esse projeto de lei, apresentado por Marta Suplicy há tantos anos, não consegue ser aprovado no Legislativo. Ao mesmo tempo, em nove Estados brasileiros e no Distrito Federal, temos decisões judiciais reconhecendo a união, de fato, de um par homossexual como aspecto de relação familiar.
Vem também da desconfiança quanto ao Judiciário a dificuldade de denunciar?
Existe essa dificuldade em todas as regiões do mundo, dos países mais modernos aos menos desenvolvidos. A violência sexual é algo muito íntimo, muito privado. Não raro a mulher evita contar sobre essa violência até mesmo para o marido. Ela se envergonha. Por quê? Porque está no inconsciente que, quando o estupro acontece, a mulher deu causa. Vou dar um exemplo. Uma aluna minha foi estuprada na Praça da Sé por volta das 18h30 num dia da semana. No seguinte, ela foi à faculdade. Estava mal, com a cabeça encostada na parede. No final da aula, ela e uma colega vieram até mim. A colega disse que ela queria contar do estupro. A menina estava tão chocada que nem retirou a calça jeans para ir ao banheiro desde a noite anterior. Ainda assim, não quis denunciar o caso na delegacia da mulher nem contar para os pais. O máximo que consegui foi orientá-la na parte médica. Pois a menina tinha um namorado. Três meses depois o menino terminou o relacionamento. Ela disse que ele passou a olhá-la de forma diferente depois que soube do estupro. Ela estava se sentindo culpada de alguma maneira. Ou seja: gritou, mas não gritou o suficiente. Impediu, mas não como devia.
O estupro é um crime que envolve muita reincidência?
Li muito a respeito, e em diferentes perspectivas, mas existe pouco estudo e conhecimento a respeito da reincidência. Agora, é fato que essas relações sexuais se dão muitas vezes com pessoas das próprias relações, como amigos e parentes. Isso torna a situação ainda mais difícil porque implica estabilidade de um relacionamento social que transcende o relacionamento com aquele tio ou aquele pai. A família inteira se envolve. É altamente provável que as mães saibam quando os pais reiteradamente têm relações com suas filhas. Dizer que não sabiam? Você acredita nisso? Eu, desde que tenho filho, tenho sonho leve. A gente fica atenta. Até porque isso se dá na própria casa, que em geral não é do tamanho de um Palácio de Versailles. Para manter o status quo, há interesses os mais óbvios, como os econômicos e financeiros, até dependência emocional e psicológica. Conheço casos de mães que praticamente negociavam a filha de 2 anos com o marido/amante/namorado para não perder o parceiro.
A senhora acha que a mudança da lei pode provocar protestos em torno do estigma de ser chamado de estuprador? Quem praticava atentados violentos ao pudor não recebia essa denominação...
Eu acho que a notícia de que alguém teria praticado mais de 50 atos hoje categorizados como estupros determina uma decisão diferente. Pode-se, pelo menos, mudar essa naturalização da violência sexual. Ser chamado de estuprador é, sim, muito forte, tanto que, quando o acusado chega à prisão, ele recebe uma sanção dos próprios presidiários no sentido do que os presos entendem por estupro. Veja o disparate, o nonsense da situação. Esses mesmos homens que estupram um estuprador que vai para a cadeia talvez tenham tido relações nunca sabidas com as próprias filhas. Onde está a lógica? O pai que tem relações incestuosas entende que tem o direito de fazê-lo. As meninas seriam suas coisinhas. Por que os homens têm essa compreensão e, na cadeia, se julgam no dever ético de punir o estuprador? Acham que os outros estupradores estariam colocando em risco suas próprias filhas e mulher, que são propriedade deles. Se o outro estupra minha propriedade (filhas e mulher), ele está invadindo/usurpando a propriedade alheia.
Pode ser que o agressor ache que não estuprou.
Em 1996 estive no Peru, onde um jovem sociólogo havia entrevistado presos estupradores. Dali saiu um livro. Enfim, seus entrevistados eram presos condenados por estupro, todos na cadeia. O autor dizia que o mais chocante para ele foi olhar nos olhos desses homens e perceber que eles não tinham a mínima noção da ofensa que faziam. Diziam: "Mas eu nunca machuquei a minha filha". Alguns não machucam mesmo, isso se dá pela sedução. Freud veio mostrar que existe o complexo de Édipo e o complexo de Electra. Nossa condição humana, o instinto do seres humanos, nos leva à atração. Agora, somos seres humanos, não somos animais irracionais. Devemos articular as nossas ações, que são razão e não-razão. Daí a importância de vivermos numa sociedade que tenha claro, como valor social e jurídico, o não-incesto. Qual é a primeira ação tipificada como crime na sociedade? O incesto. As pessoas têm que se organizar internamente, saber que uma sociedade civilizada repudia não só o incesto, mas qualquer violência sexual contra as mulheres, sejam elas pequenininhas, adolescentes, mulheres maduras ou idosas.
São muitos os casos de violência sexual contra mulheres idosas?
Em dados numéricos, não. Mas existe sim. Algumas pesquisas mostram que o estuprador compulsivo violenta a primeira mulher que aparece. Claro que as bonitas estão mais vulneráveis, e as crianças mais ainda, isso em todas as sociedades. Na ONU, venho falando muito nesse tema e vejo que minhas palavras causam mal-estar porque as pessoas não querem dar nome às coisas. A primeira coisa que devemos fazer quando descobrimos um problema é nomeá-lo.
A violência sexual permeia todas as camadas sociais?
Várias colegas minhas da área de psicologia e alguns de pesquisas dizem que é provável que os dados mostrando alta incidência de estupro nas camadas menos favorecidas têm relação com a menor intimidade delas. Nas camadas sociais mais altas, as questões vão para os divãs dos psicólogos e psiquiatras. Muitas mulheres de classe média alta podem não ter contado o que viveram aos maridos, mas certamente o fizeram aos seus terapeutas. O importante é lembrar que a divisão entre o mundo privado e o público sempre existiu, mas essa divisão foi questionada em termos históricos pelas mulheres feministas. Elas perceberam que o historicamente privado não pode continuar a sê-lo porque as maiores violências que acontecem contra as mulheres se dão dentro de casa. E em todas as camadas sociais.
Uma maior educação pode diminuir a incidência desse crime?
Não existe nenhuma pesquisa sobre isso. Na minha percepção, a educação precisa ter um papel nisso tudo, que é o de contribuir para o domínio sobre os próprios instintos.
Há dados a respeito de violência sexual praticada por médicos?
Eu desconheço. Talvez procurando no Conselho Federal de Medicina... O que posso dizer é que nunca vi ninguém fazer intervenção cirúrgica sem ter um assistente. Mas muitas pessoas não querem perder o emprego. Ao mesmo tempo, a mulher dizer que um médico tentou uma violência sexual contra ela é muito difícil. O parceiro sempre pode ter dúvida. Não é que o cara seja louco, mas isso está consoante com a maneira de se interpretar o fenômeno que mencionamos anteriormente. Além de se sentir culpada por causa do marido, ela se percebe muito coitada, fica fragilizada, machucada no âmago.
O estupro é a forma mais intensa de submissão?
Sim, é a forma mais intensa de submissão, uma arma muito usada na guerra, inclusive. O inimigo acaba com a autoestima da outra parte. As mulheres estupradas perdem a autoestima, seus maridos também, seus pais idem. Veja você o caso congolês. Há um filme chamado Rape in Congo, que foi passado para nós na última reunião da ONU. É uma grita geral porque os homens estão sendo estuprados. É óbvio que estou de acordo com que a gente grite por eles, mas por que não gritam igualmente pelas mulheres estupradas? Lembra-se das comfort women, famosas na 2ª Guerra Mundial? Justificou o ódio de uma grande região da Ásia em relação aos japoneses, que tomavam as meninas dos povos conquistados e as levavam aos locais onde estavam os guerreiros para que servissem de prostitutas. Têm sido feitos livros e pesquisas para que essas mulheres contem suas histórias.
Além do Congo, que outro caso recente de violência sexual foi ouvido pela ONU?
Foi um caso que envolve liberianos num campo de refugiados no Arizona (EUA). Uma menina liberiana de 9 anos foi estuprada por liberianos. Quando a família soube do fato, pôs a menina pra fora de casa. A Libéria tem uma presidente mulher. Ela se manifestou publicamente fazendo o seguinte: passou uma mensagem à família da menina dizendo que ela não poderia ter feito isso, mas passou outra ao governo do Estado americano no sentido de que deem a esses rapazes estupradores a possibilidade de se reinserirem culturalmente na sociedade. Como recebemos a Libéria exatamente agora, levantei o tema. Foi lembrado pela delegação deles que deveríamos considerar que o país ficou 14 anos em guerra civil e que ambas as facções ou grupos que brigavam entre si, partidos políticos que sejam, estupravam as mulheres da outra facção. O que estou verificando pouco a pouco é que o estupro em conflitos armados é um dos problemas mais universais e um dos que mais precisam ser trabalhados.
E como o Comitê Cedaw lida com esses casos?
Bom, nós lidamos diretamente com todos os países que ratificaram a Comissão da Mulher. Eles são obrigados a nos entregar relatórios de cumprimento dos 16 artigos de substância sobre os direitos femininos, dizendo o que fizeram e o que deixaram de fazer e apontando os obstáculos. Nós analisamos esses relatórios e encaminhamos perguntas a eles. Depois chamamos os representantes desses países e mantemos um dia inteiro de diálogo construtivo. Nesse trabalho na ONU, aprendi muito escutando grupos de ONGs que trouxeram mulheres violentadas. Vi que o curative rape ainda vigora em algumas regiões do mundo, em diferentes versões. Numa delas, meninas que chegam à puberdade e ainda não definiram sua sexualidade são violentadas para que optem pela heterossexualidade. Já em alguns grupos étnicos do Laos, as meninas são disponibilizadas para o estupro coletivo e até agradecem por isso. Se não forem estupradas, não viverão além de 35 anos. Acho que nenhuma sobrou para contar história diferente. Já na região da Mauritânia as meninas, quando fazem 9 anos, são amarradas a uma cadeira durante o dia. Em volta são colocados 18 litros de leite, uma quantidade enorme de cereais, isto e aquilo, para que engordem até 120, 130 quilos. Quando atingem esse peso, estariam no ponto para serem dadas aos seus esposos. Qual é a crença? Quanto maior forem, maior será o tamanho do lugar que ocuparão no coração do marido. O que cada vez mais aprendo dessas situações horrorosas a que as mulheres são submetidas é que há sempre uma justificativa comum: a sublimação é boa para a sociedade.
Silvia Pimentel, Professora de Filosofia do Direito na PUC-SP, conselheira do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e da Comissão de Cidadania e Reprodução
Texto de Mônica Manir e Bruna Rodrigues em O Estado de S. PauloO Estado de São Paulo de 29/08/09
Indicação e imagem de DOIS EM CENA http://dois-em-cena.blogspot.com/2009/08/violencia-sexual-quando-gritar-nao-e.html
Palmada não
Em 24 países, existem leis contra o tapa nas nádegas. No Brasil, bater em nome da disciplina divide opiniões
Claudia Jordão
CONSEQUÊNCIA Além de não educar, castigo físico causa insegurança e baixa autoestima |
Para uns, algo inconcebível na relação familiar, uma maneira arcaica de ensinar. Para outros, uma alternativa legítima dos pais, um método de educar os filhos, livre de danos físicos ou psicológicos. Poucos assuntos geram tanta controvérsia quanto dar ou não palmadas em crianças como forma de puni-las e mostrar o certo e o errado. Prova disso é um referendo nacional que ocorreu há duas semanas, na Nova Zelândia. Há dois anos, o país tornou a palmada crime. Além do tapa nas nádegas, outras formas de agressão - ditas brandas - contra crianças e adolescentes, como beliscões, chacoalhões e puxões de orelha, passaram a render ao agressor (em quase 90% dos casos, pais ou mães) o pagamento de multas, o encaminhamento a programas de reabilitação e até mesmo à prisão. A punição máxima é de seis meses de cadeia. Leis contra a palmada existem em 24 países (leia quadro), mas a da Nova Zelândia é a mais severa. O país possui um dos índices mais altos de violência contra menores entre as nações desenvolvidas.
Os opositores da lei querem derrubá-la a qualquer custo e defendem que "bons pais", que espalmam seus filhos de vez em quando "por amor", não podem ser colocados no mesmo balaio daqueles que espancam. A indignação virou um abaixo-assinado contra a lei e resultou em um plebiscito com a seguinte pergunta: "A palmada como parte de uma punição apropriada por parte dos pais deve ser considerada crime na Nova Zelândia?" Metade da população participou e 87,6% votaram contra a lei. A última palavra é do primeiro-ministro. John Key, porém, já avisou: a legislação continuará em vigor. Mas, agora, haverá cuidado extra para que não haja punições injustas.
ALÉM DO TAPA Na tentativa de mostrar o que é certo, Valdirene Andreotti bate de cinto no filho desde que ele tem um ano |
No Brasil, o assunto também divide opiniões. O designer gráfico Flávio Evangelista, 39 anos, e sua mulher, a administradora Keila, 32, são contra qualquer tipo de agressão física. O casal é pai de Pietro, de 2 anos, e é conhecido na escola do menino pela facilidade em dialogar com ele. "Tive uma educação severa, mas só apanhei uma vez do meu pai", diz Evangelista. "Não desejo a nenhum ser humano o que senti." Há os que acreditam na eficácia das palmadas em determinadas situações.
O professor de filosofia Dante Donatelli, 45 anos, autor do livro "A Vida em Família - As Novas Formas de Tirania" e pai de cinco filhos, entre 10 e 25 anos, defende que, dos 3 aos 10, as crianças não são capazes de entender os argumentos paternos. "Qualquer pai que vê seu filho debruçado sobre a varanda não diz 'sai daí, meu lindo'", exemplifica. "Ele fica louco." Em casos como esse, Dante afirma que os pais devem deitar a criança sobre os joelhos e espalmar as nádegas. Para ele, só assim a criança entenderá a gravidade da situação. Dante, no entanto, diz que repudia qualquer outro tipo de agressão.
Está aí, na linha tênue que divide a agressão branda da grave, a raiz do problema. "É ilusão achar que quem dá palmadas hoje não vai bater mais forte amanhã", diz o psicólogo Cristiano Longo, autor de uma tese de doutorado sobre violência doméstica contra menores pela Universidade de São Paulo (USP). A publicitária Valdirene Andreotti, 31 anos, é exemplo de quem acha palmada pouco. Mãe de Gabriel, de três anos e meio, ela relata que bateu em três ocasiões no filho e seu marido, em uma. Apenas uma vez deu palmada, nas outras duas agrediu com um cinto - na primeira vez, Gabriel tinha pouco mais de um ano.
Na ocasião, ela falava ao telefone, ele fazia birra, ela o repreendeu e ele urinou de propósito no sofá. "Foram cintadas que ele não esquece, nunca mais fez aquilo", conta ela, que mantém um cinto no carro para qualquer eventualidade. Na opinião da publicitária, as palmadas são ineficientes. "Elas deixam a criança sem-vergonha." Valdirene não tem a aprovação da sogra nem de seu pai na maneira de educar o menino. "Digo a eles que o filho é meu e que sei que, esgotado o diálogo, essa é a melhor maneira de ensiná-lo." Mas, mesmo convicta de suas posições, a publicitária chegou a chorar depois de bater em Gabriel.
Dar ou não palmadas? Nem todos estão certos sobre como agir. O assunto é discutido em consultórios e escolas, muitas das quais promovem palestras com especialistas sobre o tema. Há psicólogos que defendem a chinelada. Ela seria menos traumática do que a palmada, porque a criança não relacionaria a mão que a afaga com a que a agride. Mas a maioria condena qualquer forma de agressão.
O psicólogo Cristiano Longo é um deles: "Explico que ela até pode surtir efeito imediato, porque a criança para de fazer aquilo na hora, mas não traz resultados duradouros." Segundo ele, a criança passa a agir conforme o esperado porque teme o agressor, não porque aprendeu a lição. E, com o tempo, tende a se "acostumar" aos tapas, o que pode minar ainda mais a intenção de disciplinar. Pesquisas têm demonstrado também que esse tipo de comportamento, além de não surtir efeitos disciplinares práticos, contribui para o distanciamento familiar, o medo, a insegurança e a baixa autoestima das crianças.
EXEMPLO Flávio e Keila evangelista são contra a agressão e nunca bateram em Pietro, de 2 anos |
Na opinião da psicopedagoga Quézia Bombonatto, os pais precisam aprender novas formas de lidar com os filhos. "Até a geração passada, bater em crianças era corriqueiro. Os pais de hoje aprenderam com seus próprios pais", diz ela. A educadora Cris Poli, a supernanny, do SBT, ensina às famílias o artifício do "cantinho da disciplina". Em momentos de birra, de dificuldade de diálogo e de nervosismo extremo, a saída é levar a criança para um local específico da casa para que ela reflita sobre o que fez de errado. "É comum pais defenderem as palmadas dizendo que apanharam quando criança e que são normais", diz Cris. "Isso é muito relativo." Pesquisas mostram que crianças que levam palmadas podem desenvolver personalidade sadomasoquista, além de outros danos. O principal trabalho a relacionar esses fatos é o "Relatório Hite sobre a Família:
Crescendo sob o Domínio do Patriarcado", da sexóloga americana Shere Hite. Segundo o estudo, palmadas nas nádegas, chicotadas e surras são as origens de grande parte do sadomasoquismo na idade adulta.
ALTERNATIVA a supernanny cris Poli defende o "cantinho da disciplina", para a criança refletir |
A agressão contra menores é mais comum do que se pensa. Por se tratar de uma questão cultural e até religiosa - há católicos e evangélicos que se apoiam em passagens bíblicas para justificar as "palmadas educativas" -, mesmo pais esclarecidos não abrem mão do artifício. Nas classes média e alta é uma prática mais silenciosa do que na periferia, onde as famílias são maiores e os espaços, menores. A boa notícia é que ela é cada vez mais rejeitada. Hoje, não é raro pessoas intervirem quando testemunham agressões públicas. Essa importante mudança de comportamento do brasileiro começou no início da década de 1990, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege os menores dos maus-tratos e agressões.
A lei é ampla, mas as palmadas podem ser enquadradas nela. A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) propôs, em 2003, um projeto de lei específico sobre o tema, proibindo as diferentes formas de castigo físico (leia quadro). "Nossa intenção não é punir os pais, é educá-los", diz ela. Como há três anos a proposta está parada na Câmara, a deputada trabalha, agora, em um novo projeto de lei no qual o foco não será o termo "palmada", mas "castigo físico". Assim, espera angariar mais simpatizantes para a causa.
Atualmente, além do ECA, cabe à Constituição e aos códigos Civil e Penal regulamentarem as relações familiares - nesse quesito entram os castigos físicos. Na prática, o pai que dá "palmadas educativas" pode ser chamado à Justiça para uma conversa com assistentes sociais e psicólogos. Quando a agressão é mais severa, ele pode perder a guarda da criança e responder criminalmente. A pena varia muito, mas, se for configurada tentativa de homicídio, ultrapassa 20 anos de prisão.
A definição de branda, moderada e grave depende da interpretação do juiz. O desembargador Antônio Carlos Malheiros lamenta que grande parte das denúncias de agressão contra menores só aconteça quando os casos são muito graves. "Infelizmente, a maioria das histórias que chegam à Justiça é de espancamentos", diz ele. "Se casos de agressões ditas brandas fossem denunciadas, poderíamos evitar o pior."
Projeto obriga escola a ter só merenda "saudável"
Proposta na Câmara abrange ensino infantil e fundamental, público ou privado
Texto não define os produtos proibidos; para federação de escolas particulares, consumo de alimento saudável deve ser incentivado, mas não imposto
Sergio Lima/Folha Imagem |
Coxinhas, balas e refrigerantes podem ficar no passado do lanche nas escolas. Um projeto de lei que tramita na Câmara quer obrigar instituições públicas e privadas de ensino infantil e fundamental (até 14 anos) a só vender e oferecer aos alunos "alimentos saudáveis".
O texto não define o que seria proibido e remete a uma regulamentação posterior. Para o Conselho Federal de Nutricionistas, alimentos com muito sal, gordura ou açúcar e, principalmente, industrializados deveriam ser vetados.
Vai nessa linha um projeto de lei de Minas, que deve ser sancionado pelo governador Aécio Neves (PSDB) nesta semana. A proposta também proíbe alimentos com altos teores de calorias e poucos nutrientes.
Essas medidas se justificam, dizem os autores das propostas, pelo alto índice de obesidade infantil e do surgimento de doenças crônicas. "Pelo menos durante o tempo em que estão na escola, nossas crianças e jovens devem estar livres da pressão e tentação de consumo de produtos inadequados ao seu desenvolvimento saudável", afirma o autor, deputado Lobbe Neto (PSDB-SP).
Para José Augusto Lourenço, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares, o consumo de produtos saudáveis deve ser incentivado, mas não imposto. "No shopping é liberado. Se é proibido, é proibido em todo o lugar. E acho um absurdo uma lei determinar como alguém vai se alimentar."
O Ministério da Saúde afirma que é favorável ao mérito do projeto, que vai na linha de uma portaria de 2006 -ela orienta as escolas a promoverem hábitos alimentares saudáveis.
Para tanto, é necessário aumentar a oferta e o consumo de frutas, legumes, verduras e cereais integrais e reduzir de alimentos preparados com elevadas quantidades de açúcar, sal e gordura, diz Ana Beatriz Vasconcellos, do ministério.
"Escola fez bem"
Algumas escolas já praticam esses hábitos. O Colégio Marista de Brasília, há dois anos, mudou os produtos na cantina. Chocolate industrializado, refrigerante, bala e fritura foram cortados. Mas os alunos podem comprar brigadeiro e bolo caseiros, salgados assados e pizza.
Ainda assim é preciso bom senso, afirma Rosane Nascimento, presidente do conselho de nutricionistas. "Bolo de chocolate não pode no dia a dia."
Esse termo "saudável" pode enganar, diz Beatriz Salles, 40, mãe de três filhos na escola. "Você pensa que vai ter só sanduíche natural, fruta e suco. Mas aqui há opções que as crianças gostam. E também o pai manda outro lanche, se achar que é o caso."
Aluna do sexto ano, Brenda Oliveira, 10, já aprendeu. Por que proibiram o pastel? "Pela gordura. A gente sente falta, mas a escola fez bem", disse.
A mudança está em discussão na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e precisa ser analisada pelo Senado.
JOHANNA NUBLAT e MARIA CLARA CABRAL Na Folha de São Paulo de 30/08/09
sábado, 29 de agosto de 2009
Dom Paulo Evaristo critica Senado em apoio a Flávio Arns
Ao confirmar aos colegas, anteontem, sua desfiliação do PT, o senador Flávio Arns (PT-PR) leu no plenário do Senado telegrama enviado pelo tio e ex-arcebispo de São Paulo cardeal dom Paulo Evaristo Arns.
"Parabéns [pela] atitude coerente diante [da] corrupção inacreditável [do] Senado", diz o telegrama, citado no discurso. O cardeal ainda transmite votos de apoio à senadora Marina Silva (sem partido-AC) -que também deixou o PT, na semana passada- e ao senador Pedro Simon (PMDB-RS).
Flávio Arns leu também sua carta de desligamento, enviada no mesmo dia ao PT. No texto, justifica a saída pela orientação da sigla de livrar José Sarney (PMDB-AP) no Conselho de Ética. Acrescenta que sofreu discriminação pessoal e política dos membros do PT e do próprio presidente Lula.
Ontem, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski afirmou que o Senado talvez tenha perdido a legitimidade.
"A paralisia do Senado é de natureza decisória, talvez por perda da legitimidade", disse, em palestra na Fundação Getulio Vargas, no Rio.
Lewandowski também criticou a "fragmentação" do Legislativo. "Existem muitos partidos e cada um representa um interesse, é muito difícil chegar a um consenso", completou.
Da Folha de São Paulo de 29/08/09
Autorregulamentação é insuficiente para proteger a infância contra a publicidade
O MODELO da sociedade de consumo não se esgota na produção e distribuição massificada de bens e serviços. Também faz parte da essência desse modelo o processo de comercialização, que inclui a publicidade e o marketing, cujos objetivos são incrementar vendas, induzir comportamentos e criar demandas.
Como parte, e não o todo da vida em sociedade, o modelo de produção, comercialização e consumo deve ser avaliado e valorado em seus conflitos com outros valores e consequências.
O consumo não é mais simples operação econômica, mas positiva preocupação jurídica. É possível induzir o consumo infantil de produtos associados a doenças crônicas, notadamente à obesidade? Juridicamente, não.
O pressuposto de qualquer consumo é a segurança do consumo. O pressuposto de qualquer ação econômica sobre a criança é o respeito por sua condição prioritária, sua liberdade e seu desenvolvimento.
Contrário a isso, a indução ao consumo de alimento ou bebida gordurosos, com altos teores de sais e açúcares, é a formação de hábitos, de dieta e de padrão de relacionamento da criança com o alimento em desrespeito a essa proteção legal e vinculante.
A criança não sabe se proteger da publicidade. Na verdade, por sua condição cognitiva, não sabe sequer reconhecê-la, quanto mais perceber sua natureza parcial e indutora. Ao fornecedor não deve ser permitido direcionar sua estrutura para atingir esse público hipossuficiente, influenciável, exposto e encantado por personagens, figuras e personalidades que formam o imaginário infantil.
A obesidade é uma epidemia criada pelo homem. Atinge mais de 13% das crianças. Decorre de hábitos e padrões de conduta.
Não pode a publicidade, pois, funcionar para dar à industria a potencialidade de formar os hábitos alimentares do público infantil, o padrão de relacionamento, valoração e atração entre criança e alimento.
A questão das doenças crônicas e a indústria no Brasil deve ser assim vista no contexto constitucional e legal brasileiro. Aqui, a criança, a saúde, a vigilância sanitária, a função social da iniciativa privada e a proteção do consumidor são constitucionais.
A publicidade não é liberdade de expressão, mas liberdade de iniciativa, vinculada aos valores da ordem econômica (vale o exemplo da Lei Cidade Limpa, que não foi impedida por eventual liberdade de expressão).
Considerados esses pressupostos, é possível afirmar que a autorregulamentação da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis para crianças abaixo de 12 anos recém-anunciada é insuficiente para garantir a proteção da saúde e da infância.
O documento, assinado por 24 grandes empresas, tem uma série de lacunas que permitem, na prática, que a publicidade continue a atingir a criança.
Segundo o compromisso empresarial anunciado, quem dirá se o produto é saudável ou não é a própria empresa fabricante, e a limitação da publicidade se restringirá a inserções publicitárias em televisão, rádio, mídia impressa ou internet que tenham 50% ou mais de audiência constituída por crianças menores de 12 anos.
No documento, não há previsão da interrupção de outras condutas lesivas, como distribuição de brindes associados a produtos não saudáveis e uso de personagens, desenhos e outras imagens com forte apelo infantil.
Falta a definição de um padrão único do que se considera saudável, impedindo que cada empresa utilize critérios que atendam a seus interesses.
Por fim, o critério para restrição vinculado a percentual de audiência não é eficiente. O mais adequado é a adoção de horários em que a publicidade pode ou não ser veiculada. Como medir a audiência, por exemplo, na internet?
Embora assumir esse compromisso seja um movimento positivo das indústrias de alimentos e bebidas, não está excluída a necessidade de edição de uma norma governamental que contemple os pontos que ficaram de fora da autorregulamentação.
Cumpre esse papel a resolução que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está finalizando e que deve entrar em vigor neste ano.
Da Folha de São Paulo de 29/08/09, texto de
DANIELA BATALHA TRETTEL , mestre em direito pela USP, é advogada do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
MÁRCIO SCHUSTERSCHITZ DA SILVA ARAÚJO é procurador da República.
A cidadania pós-caseiro
A partir daí, deu tudo errado para Francenildo. Foi perseguido pelo Estado brasileiro. Teve seu sigilo bancário quebrado. Três anos se passaram. A ação movida por ele contra a Caixa Econômica Federal continua sem solução. Ao mesmo tempo, Palocci já está livre, leve e solto, absolvido pela Justiça.
Esse episódio concluído pelo Supremo Tribunal Federal anteontem tem vários ângulos. O mais saliente do ponto de vista político eleitoral é Lula ter reabilitado um de seus quadros de elite. O outro aspecto é o conservadorismo do STF ao não enxergar indícios suficientes para processar Palocci.
Mas o efeito mais relevante da decisão do STF é desestimular cidadãos interessados em participar da vida pública. Tome-se o caso do momento no mundinho político de Brasília, a reunião nebulosa e pendente de confirmação entre Dilma Rousseff e Lina Vieira. Qual a chance de um motorista, secretária ou assessor de baixo escalão se animar e contar a verdade? Se tiverem juízo, todos ficarão calados.
Essa foi a lição ministrada pelo STF a caseiros, mordomos, secretárias e motoristas de poderosos: tomem cuidado. Suas palavras não valem nada. Terão efeito nulo se desejarem relatar alguma impostura.
Todos vocês correm o risco de terem suas vidas devassadas. Na Justiça local prevalecerá a tradição lusitana, ibérica e obcecada por provas irrefutáveis e cabais para dar início a um processo.
Ontem, sexta-feira, a Praça dos Três Poderes estava vazia -apesar de outro escândalo acabar de ser sepultado. É compreensível ninguém protestar. Tornou-se arriscado exercer a cidadania nestes tempos pós-Francenildo.
Texto de Fernandos Rodrigues na Folha de São Paulo de 29/08/09
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
A única oposição
Tenho lido e ouvido muitos argumentos sobre a corrupção e desfaçatez da política brasileira que podem cair na mesma paralisia que condenam. É verdade que ver a absolvição de Sarney por seus colegas graças às manobras lulistas s
O argumento mais comum, baseado nas evidências mais plausíveis, diz que todos os políticos são corruptos e, portanto, não faz diferença quem esteja lá. Em contraposição, há a frase do grande Eça de Queirós que tem circulado pelos emails: “Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente, e pela mesma razão.” Se essa frequência será de quatro, cinco ou seis anos, e se com uma, nenhuma ou duas chances de reeleição, cada país fará seus testes. Só não tem sentido ficar mais que meia dúzia de anos sem abrir opção real de mudança – a qual certamente não é a do plebiscito periódico que certos autoritários latino-americanos oferecem em sistema quase monopartidário. A premissa da democracia não pode ir parar na mesma vala comum da rejeição.
Outro argumento vulgar é o de que “corrupção existe em todo lugar”, inclusive nos países mais ricos como EUA e Japão. Há um desdobramento um pouco mais sofisticado que chamo de argumento “italiano”: como na terra de Berlusconi, cujo problema não são os bacanais domésticos e sim a sacanagem que faz com as leis e os adversários, no Brasil poderíamos ter uma economia desenvolvida mesmo que a máquina pública seja instável, corroída, obscura. Bem, primeiro é preciso lembrar: o que não existe em outros lugares mais desenvolvidos é essa impunidade, essa tolerância à corrupção, essa cultura contaminada em todas as classes e regiões pela formação paternalista ou antiliberal. Aqui a corrupção não procura brechas: ela dá liga a todo o sistema. Segundo, apenas a ignorância ou a má-fé podem pôr de lado a história antiga e conflituosa da sociedade italiana – onde a cultura de mercado brotou, como mostraram autores como Tocqueville e Trevor-Roper – e seus avanços institucionais.
Há um terceiro argumento, também razoável sob vários ângulos, que deriva dos dois anteriores. Diz que a sociedade brasileira não pode apontar o dedo para seus representantes porque a maioria de sua população também é dada à contravenção, muitas vezes chamada de “jeitinho” (os diminutivos eram indispensáveis nos costumes da casa grande) – desde a propina na porta do estádio de futebol até a sonegação assumida de empresários e latifundiários, desde a “caixinha” para o guarda ou fiscal até a mancomunagem na hora da licitação. Acontece que, mais uma vez, apontar o dedo para seus representantes é uma prerrogativa da sociedade democrática, por mais desigual que seja essa sociedade e por mais imatura que seja sua democracia. Afinal, eles são pagos por nós. E há muitas, muitas pessoas e empresas que são mais corretas e comprometidas do que a politicalha.
Não estou falando apenas que as autoridades, sendo líderes (em tese), são obrigadas a dar o exemplo, como Creonte. Exigir moralidade não é udenismo ou pequeno-burguesismo, ou não deveria ser. É uma parte fundamental daquilo que define uma democracia republicana: a possibilidade de controlar o poder, de monitorá-lo e limitá-lo, por meio de imprensa livre, direitos de cidadania, associações e instituições independentes, e não só de escolhas eleitorais (tanto é que na maioria dos países o voto não é obrigatório). O estado precário dessa rede de vigilância se vê no debate nacional, dividido entre os ufanistas do “país do futuro” e os narcisistas do “isto não tem jeito”, muitas vezes encarnados na mesma pessoa; e sobretudo na incapacidade de pressionar a sério a classe política. Pesquisa do Datafolha, realizada mais de dois meses depois das primeiras denúncias, mostrou que 74% querem que Sarney deixe o cargo; alguns protestos surgiram em ruas e internet; a OAB entrou com representação. Mas Sarney continua. Faltou alguém de dentro gritar “Sai daí, Zé”?
Outro sinal dessa precariedade está na reação à mera menção da palavra “reforma”, especialmente a política. Sempre se invoca a ideia quando a crise está aguda, mas aí vem muita gente – inclusive os que se dizem social-democratas, conceito que implica necessariamen
Com isso, e fazendo valer as regras já existentes como a proibição ao nepotismo e a fidelidade partidária, se começaria a desmontar uma estrutura arcaica. Precisamos reduzir o poder dos Sarneys e não de pessoas como Gabeira, que cometeu erros e deve pagar por eles, mas que não é um Sarney. É claro que eu, por minhas inclinações pessoais, gostaria de ir mais longe e mudar o sistema partidário, quiçá reduzindo a três legendas (para não ficar no binarismo anglo-saxão); corrigir a proporção representativa (se o Senado serve para o equilíbrio federativo, por que a Câmara privilegia tanto os estados menos desenvolvidos?); adotar o voto facultativo, cancelando também a propaganda partidária gratuita fora de período eleitoral. Mas é preciso trabalhar no terreno do possível. Ou a lama nos enterra.
Texto de Daniel Pizza em O Estado de São Paulo de 24/08/09
Voto Nulo, Vote zero! Vote zero?
Que pode fazer "o povo" se os que se intitulam seus representantes usurpam a soberania popular em nome de interesses próprios?
NAS ELEIÇÕES de 2002 e 2006, votos brancos e nulos para senador somaram, em cada uma, quase 20% do total. Que aconteceria se mais da metade do eleitorado votasse em branco e/ou anulasse seus votos?
Muita gente que propõe anulação de votos pela maioria supõe que tal repúdio forçaria a anulação das eleições. Engano. Nem mesmo anulação voluntária de, digamos, 99% dos votos registrados determinaria nulidade duma eleição.
Presidente da República se elege, por exemplo, por maioria absoluta de votos válidos, qualificação que exclui do cômputo os brancos e nulos; é como se estes não existissem. Hipoteticamente, portanto, ainda que o resto do eleitorado anulasse seus votos, bastariam para eleger presidente os votos de familiares dum candidato (contanto que sua parentalha fosse mais numerosa que a do conjunto de seus possíveis concorrentes).
Tampouco procede o fantasioso consolo de saber quantos votos em "zero" exprimiriam rejeição explícita de todos os candidatos. Diz o artigo 164 do Código Eleitoral: "É vedada às Juntas Eleitorais a divulgação, por qualquer meio, de expressões, frases ou desenhos estranhos ao pleito, apostos ou contidos nas cédulas". Por isonomia, a proibição se estende ao registro digital de votos.
Já foi pior: até 1997, os votos brancos eram computados em favor dos mais votados, resultando em aberrantes distorções da preferência do eleitor.
O mal redigido artigo 224 do código tem alimentado a falsa esperança de o povo impugnar eleição mediante anulação da maioria dos votos: "Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias".
A tal "nulidade", porém, adviria apenas de irregularidades como violação de urnas ou do sigilo do voto, descumprimento de horário ou local da votação, impedimento de partidos supervisioná-la etc. Em suma, juízes podem anular eleição; eleitores, não.
E ainda que pudessem, para quê? A tal "nova eleição" não admitiria candidaturas diferentes das registradas no pleito anulado.
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos (...)", diz a Constituição. Mas que pode fazer "o povo" quando os que se intitulam seus representantes usurpam a soberania popular para representar, sim, apenas interesses próprios e os de grupos que os subornam pela via perversa do lobby? Por meios legais, nada.
Como você talvez já tenha lido neste espaço, não faz sentido aspirar à vitória se as regras do jogo forem dadas pelo adversário.
A perversão eleitoral vem de longe.
Em 1977, sondagens da opinião pública indicavam que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB, da oposição) superaria a Aliança Renovadora Nacional (Arena, partido de sustentação política do regime militar) nas eleições parlamentares de 1978.
Por caber ao Congresso eleger o presidente da República por sufrágio indireto, maioria parlamentar oposicionista significaria derrota certa do general João Baptista Figueiredo, candidato oficial incumbido de cobrir a retirada "gradual e segura" do estamento militar que exercia o poder.
Alarmado, o presidente Ernesto Geisel baixou o "Pacote de Abril", conjunto de emendas constitucionais para estabelecer que nenhum Estado seria representado na Câmara dos Deputados por mais de 55 parlamentares nem por menos de seis. No Senado, o número de representantes de cada Estado passava de dois para três, com o terceiro (o "senador biônico") virtualmente nomeado pelo governo. Com tais medidas, estados do Norte e do Nordeste, menos populosos e mais dóceis, ganharam representação parlamentar desproporcional. Embora recebesse mais votos na eleição seguinte, o MDB não obteve maioria no Congresso, que então elegeu o general Figueiredo.
Mais tarde, abolida a figura do biônico, voltamos então a ter dois senadores? Não. (Conveio à classe política salvar algo do "entulho autoritário" para proveito próprio.) E o número de deputados de cada bancada corresponde às respectivas populações estaduais? Não. (Barões do Norte e Nordeste alugam seus feudos eleitorais a quem paga mais, que é sempre o governo federal.) Vote zero? Protesto fútil.
Mas, se exercido pela maioria, não privaria de legitimidade o triunfo dos usurpadores?
Texto de Aldo Pereira na Folha de São Paulo de 24/08/09
domingo, 23 de agosto de 2009
Se você estiver com dor de dente
sábado, 22 de agosto de 2009
Todos "se lixam" para os políticos
É só prestar atenção aos números da pesquisa Datafolha, em que 74% dizem querer o afastamento de Sarney. É ilusório.
Detalhemos o resultado: apenas 78% tomaram conhecimento das denúncias. Apenas?, perguntará você. Sim, apenas. Neste caso, não se trata de campanha da mídia impressa, ao contrário do que pretende o clã Sarney, que até buscou -e conseguiu- obter a censura de um jornal, o "Estadão", o que necessariamente se estendeu aos demais meios de comunicação.
As denúncias estão em toda a parte, inclusive nos meios realmente de massa (TV e rádios).
Que quase um quarto do eleitorado não tenha tomado conhecimento delas diz tudo a respeito da cidadania no Brasil. Mas há detalhes ainda mais deprimentes: dos 78% que, sim, tomaram conhecimento das denúncias, só 24% se dizem bem informados.
Tem-se, pois, que pouco menos de 19% do eleitorado (24% de 78%) está em condições de indignar-se, porque, para isso, é preciso estar antenado, certo?
Inverte-se aqui a frase daquele deputado que dizia "lixar-se para a opinião pública". A tal de opinião pública é que se lixa para as denúncias, possivelmente porque prevalece a ideia de que todo político é ladrão. Uma acusação a mais ou a menos contra um político a mais ou a menos não faz, portanto, a mais remota diferença.
Ah, os que se dizem petistas desmentem o argumento calhorda de que há uma perseguição a Sarney para atingir Lula. São eles, com 73%, os vice-campeões em cravar "sim, Sarney está envolvido", acima da média (66%) e atrás apenas dos tucanos. Aceitam, pois, que a "perseguição" é dos fatos.
Texto de Clóvis Rossi na Folha de São Paulo de 21/08/09
Notícias do pantanal
Foi o que o presidente Lula fez de novo nesta semana, insistindo em abraçar-se ao dragão, mesmo que lhe custasse a perda de velhos aliados. Pela repetição, tal atitude não deveria surpreender ninguém e, aos que se indignaram e pediram o boné, desligando-se do PT, só não se entende por que não o fizeram há mais tempo. Nos últimos anos, nomes respeitáveis do petismo já caíram fora, e pelo mesmo motivo -para escapar ao miasma.
Em todas essas defecções, a reação de Lula resumiu-se a "os incomodados que se mudem". Sua autossuficiência fará com que, até o fim do mandato, a troca de times se complete: a seu lado, estarão todas as figuras que um dia ele execrou e aos quais parecia uma alternativa -Sarney, Collor, Maluf e os demais. Na oposição, ou de pijama em casa, os "companheiros" que, em 1980, lhe ensinaram as primeiras letras e o usaram como pôster para suas ideias, sem imaginar que o pôster fosse ganhar vida, vestir a casaca e virá-la pelo avesso.
Lula ficou maior que o PT. Enquanto este se afoga no mangue, o presidente nada de braçada no azul. É imune a algas, dejetos e caranguejos, como se fosse feito de teflon -como o definiu no passado seu mais simbólico adversário, o hoje também aliado Delfim Netto.
Nada se gruda a Lula. Dentro de ano e pouco, sairá do governo fresco como uma rosa, deixando o brejo coaxando pela sua volta.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Uma Heloísa Helena de verdade
Com sua cara de brasileirinha barrada no baile, Marina Silva é a bandeira que o mundo quer ver o Brasil hastear
Não é só o fato de que Dilma agora ficou marcada como mentirosa, de que não tenha jogo de cintura ou nem mesmo carisma. Não. O que ela não parece ter é paixão, é vontade do fundo do âmago do ser íntimo de ser candidata. A impressão que dá é que ela está lá apenas desempenhando o seu papel de forma burocrática porque o presidente pediu, porque o PT não tem outra opção.
Mas veja como o mundo é redondo. Justo quando Dilma é pega numa mentira grave (aliás, duas, se contarmos a lorota do diploma), exatamente na semana em que o abscesso do PT é lancetado no julgamento de um aliado tão improvável quanto José Sarney, jorrando o pus do clientelismo para todo lado e deixando claro que o processo infeccioso chegou a níveis insuportáveis -o senador Arns que o diga-, surge a figura beatificada de Marina Silva para resgatar uma utopia que já foi monopólio do partido.
O ex-ministro dos Transportes, Mário Andreazza, costumava dizer que nunca se deve trabalhar com idealistas porque com eles não há acordo possível. Faz sentido que ele dissesse isso, não? Pois o PT se deteriorou por conta de suas próprias contradições, e das cinzas surgiu essa figura impoluta, sem posses, sem um escândalo que lhe marque a trajetória, sem fome de poder, com vontade apenas de expor seus ideais, professora e humanista que não cede ao populismo.
Com sua cara de brasileirinha barrada no baile, do ponto de vista pedagógico Marina Silva representa a bandeira que o mundo quer ver o Brasil hastear. Alfabetizada no Mobral, contaminada por metais pesados, vítima das doenças da floresta, alguém que percorreu uma estrada muito similar à de Lula, só que sem a mácula do sindicalismo, o que ela pensa sobre sustentabilidade e o ambiente faz todo o sentido em um país que possui 60% do que resta de hectares "plantáveis" no mundo.
Que se dane se santa Marina não tem um nome para o Banco Central, ideias claras (ou qualquer ideia) sobre a economia e que seja adepta do criacionismo, que nega as teorias de Darwin, não é mesmo? E, para os eleitores que andam aderindo a essa maldição da pregação purista, que está dando à lei antifumo de Serra perto de 80% de aprovação, ou para o cara-pintada dormente que não faz parte da vendida UNE e que está cheio de ficar gritando "Fora, Sarney" na internet para ninguém ouvir, Marina Silva é uma Heloísa Helena de verdade, um Cacareco não avacalhado, o voto de protesto que dignifica.
Definitivamente, não foi a melhor semana da vida da ministra Dilma ou do PT.
Texto de Barbara Gancia na Folha de São Paulo de 21/08/09
Vexame total
SE UMA pizza se divide facilmente em dois sabores, meia mozarela, meia napolitana, nem sempre é possível posar de governo e oposição ao mesmo tempo. Há ocasiões, como na fatídica sessão que mandou ao forno as acusações contra José Sarney, em que ou bem o político escolhe um lado -ou bem um lado escolhe o político.
Marina Silva (AC) escolheu um lado, e da mesma forma agiu o senador Flávio Arns (PR). Ambos anunciaram a saída do Partido dos Trabalhadores no dia em que a legenda, qual um zumbi sob o comando telepático do Palácio do Planalto, foi o protagonista de mais um vexame histórico.
Também tomaram posição clara os três senadores petistas que, com seu voto no Conselho de Ética, sepultaram qualquer esperança de investigação contra o presidente da Casa. Decerto se esquivaram de microfones e evitaram alarde. Cumpriram à risca, entretanto, o seu papel no pacto sinistro entre Lula, Sarney, Collor e Renan Calheiros.
Já o líder do governo no Senado, o petista Aloizio Mercadante, tentou manter um pé em cada canoa e naufragou, com direito a humilhações em série. Agora não há quem se disponha a lançar-lhe um salva-vidas. Faz pantomima de vítima, pois enfrentará as urnas no ano que vem, mas nada do que fez ou deixou de fazer impediu, nem sequer dificultou, a execução do desejo do presidente Lula de reforçar, sem importar-se com os meios, a sua aliança com oligarcas.
Difunde-se a versão de que "as bases" petistas estariam furiosas com o pragmatismo de cangaço exibido nesta quarta-feira. Propaganda enganosa: as bases que restaram ao Partido dos Trabalhadores estão todas abrigadas nos escaninhos da máquina estatal e farão tudo para manter a "boquinha" em 2010.
Eles insistem na CPMF
Proposta de recriar a CPMF, típica de governo acostumado a esfolar o contribuinte para abonar gastança, é inaceitável
IMAGINA-SE o regozijo das lideranças oposicionistas com o fato, revelado ontem nesta Folha, de que PMDB e PT fecharam acordo sobre a criação da CSS (Contribuição Social para a Saúde), a sucedânea da extinta CPMF, e prometem aprovar a matéria no Congresso até o fim do mês que vem. Às portas das eleições presidenciais, os adversários de Lula ganhariam, de graça, um mote de grande apelo na sociedade para atacar a candidatura situacionista.
O governo federal -que sozinho já retira do trabalhador três meses de seus proventos anuais (o total da derrama, somando tributos de Estados e municípios, toma mais de quatro meses de trabalho)- propõe-se a esfolar ainda mais o contribuinte.
A oposição nem precisa repetir o feito de dezembro de 2007, quando impôs ao governo Lula a sua maior derrota parlamentar ao sepultar a CPMF no Senado, embora a reincidência daquele desfecho seja possível. Mesmo na hipótese de o novo tributo ser aprovado, a exploração do tema na campanha teria potencial corrosivo para o governo -basta lembrar o efeito do rótulo "martaxa" na derrota da petista Marta Suplicy em 2004, quando tentou reeleger-se prefeita da capital paulista.
Embora o projeto de ressuscitar o imposto do cheque, com alíquota de 0,1% sobre cada operação financeira, pareça ferir a lógica dos políticos em mais de um sentido -acrescente-se, por exemplo, a dificuldade de um congressista de aprovar algo do gênero a poucos meses de disputar a reeleição-, ele se harmoniza com o histórico deste governo e de outros que o antecederam.
Tornou-se costume sacar do contribuinte sempre que bate à porta a necessidade de abonar a gastança estatal. O galope da carga tributária, que se aproxima dos 40% do PIB, o demonstra.
O argumento de que o novo imposto seria destinado exclusivamente a financiar a saúde pública menospreza a inteligência do público, de resto ludibriado pela mesma conversa nas origens da CPMF. O fato de carimbar-se a utilização de uma verba não impede que se retirem, por outros meios, recursos da área alegadamente beneficiada.
A exploração, na tentativa de justificar mais um ataque ao bolso do cidadão, da epidemia de gripe suína, e das necessidades de gasto público que suscitou, é um acinte. Despesas emergenciais e pontuais desse tipo devem ser cobertas com fundos de contingência e remanejamentos de verbas; jamais com a instalação de um imposto permanente.
O Ministério da Saúde prevê arrecadar R$ 10 bilhões anuais com o novo tributo. O governo federal concedeu reajustes a servidores que, só neste ano de 2009, vão custar ao erário R$ 20 bilhões em despesas novas, uma conta que irá se prolongar e engordar, feito bola de neve, pelas próximas décadas.
Se o Executivo deseja aumentar o dispêndio em saúde -um objetivo justificável, desde que acompanhado de reformas que melhorem a gestão e diminuam o desperdício no setor-, que corte na própria gordura. Recorrer mais uma vez ao contribuinte é inaceitável.
A paz dos cemitérios
O verbo normalizar, usado por Sarney para descrever o que acontece no Senado, é muito significativo. Todos esperavam por outro verbo: moralizar. A normalização para um senador que deixa seu partido porque a bandeira da ética foi jogada na lata de lixo representa o horror que precisa ser enfrentado, inclusive com o risco de perder o mandato.
Numa hora dessas, é possível pensar em duas direções: a eleitoral e a outra, do interesse do país. Na primeira, a instituição putrefata vai exalar seu horrível fedor sobre as forças que mantiveram Sarney. O preço ainda será pago.
Mas, para o interesse nacional, era preciso resolver a situação rapidamente, sem considerar as eleições. Num movimento interno, isso não foi possível.
Sempre disse que não bastava a opinião pública e a pressão da imprensa. É preciso fazer algo articulado, no interior do próprio Senado.
Desde menino também, quando lutava contra o aumento do preço dos bondes, constatei que, infelizmente, um argumento apressa todos os processos: o cheiro de fumaça.
É o tipo do argumento que hoje em dia combato. É preciso algo não violento. E creio que a resistência pacífica deveria ser reservada para todos os senadores que se apresentarem na campanha de 2010. Nem todos tiveram o mesmo comportamento. Mas todos terão de explicar o que fizeram durante essa crise.
Os estrategistas convencionais acham que tudo voltará ao normal, que as pessoas vão esquecer. Não percebem que o mau cheiro vai envolver também sua campanha presidencial. Estão sentados em cima de um cadáver, uma instituição morta, com um Conselho de Ética dominado por cafajestes.
Mesmo sem cheiro de fumaça, tão eficaz no passado, o país achará uma forma de punir os coveiros da credibilidade política.
Texto de Fernando Gabeira na Folha de São Paulo de 21/08/09
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
PMDB e PT apoiam criação de nova CPMF
Bancada do PMDB fecha posição após reunião com o ministro Temporão pela criação de contribuição específica para a saúde
Alíquota da CSS seria de 0,1%; gasto com gripe suína é usado para justificar nova contribuição, em momento de queda na arrecadação
Num momento em que a arrecadação de tributos federais está em queda, o PMDB, maior partido do Congresso e principal aliado do governo, decidiu apoiar a recriação da CPMF, batizada agora de CSS (Contribuição Social para a Saúde). Em reunião com o ministro José Gomes Temporão (Saúde), ontem, no Congresso, toda a bancada peemedebista fechou questão favorável ao término da votação do projeto que regulamenta a emenda constitucional 29, destinando mais recursos para a saúde e que ao mesmo tempo cria a CSS, com alíquota de 0,1%.
No ano passado, o governo chegou a votar o texto base do projeto, mas, correndo o risco de derrota, decidiu deixar o último destaque, apresentado pelo DEM -que suprime o artigo que estabelece a base de cálculo da contribuição-, para depois. Agora, o discurso oficial do PMDB é que a saúde precisa de mais recursos devido à gripe suína. O compromisso do partido, que conta com o apoio também do PT, é votar a proposta no máximo até setembro na Câmara. Caso passe, o texto ainda segue para votação no Senado.
Foi lá que foi barrada, no final de 2007, a prorrogação da CPMF, cuja alíquota de 0,38% deixou de ser cobrada em 1º de janeiro do ano passado.
"Desta vez vamos aprovar porque o quadro da saúde piora. Essa é a última alternativa para salvar o SUS. Temos muita necessidade, ainda mais com os gastos excepcionais com a gripe. Se o presidente Lula não acordar, a saúde será o maior desgaste desta gestão", afirmou o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), coordenador da Frente Parlamentar da Saúde.
A oposição é contra a recriação. Caso a CPMF volte, eles ameaçam ir à Justiça, alegando ser inconstitucional criar um novo imposto dessa forma, por meio de projeto de lei -a antiga contribuição foi criada e prorrogada por meio de emenda à Constituição.
Alíquota menor
Caso venha a ser aprovado, o novo tributo, com alíquota de 0,1% sobre as movimentações financeiras, seria integralmente repassado para a saúde. Com esse argumento, procura-se vencer a natural resistência dos parlamentares em aprovar um novo tributo a menos de um ano das eleições.
Dados do ministério mostram que toda a regulamentação da emenda 29 destinará à área mais R$ 15 bilhões por ano, o equivalente a pelo menos um quarto do orçamento atual da pasta.
Desse montante, R$ 10 bilhões viriam da União por meio da CSS. Os R$ 5 bilhões restantes viriam dos cofres estaduais, já que a regulamentação da emenda dirá o que pode e o que não pode ser considerado gasto em saúde.
A Constituição estabelece que os Estados devem gastar 12% do seu orçamento na área, mas, atualmente, muitos Estados contabilizam como investimento em saúde despesas com planos de saúde do funcionalismo e assistência social, por exemplo. De acordo com análise do Ministério da Saúde, 18 Estados usaram expedientes como esse em 2006.
O orçamento atual da pasta é de R$ 54 bilhões, um aumento de 9,5% sobre os R$ 49,3 bilhões do ano passado.
Receita em queda
Na primeira tentativa de recriar a CPMF, no primeiro semestre do ano passado, a base governista perdeu o argumento da necessidade de recursos para a saúde -afinal, mesmo sem a contribuição, a arrecadação federal batia recordes mensais sucessivos. Desde o agravamento da crise econômica global, em setembro, porém, a receita passou a cair.
A receita esperada com a CSS é pequena diante do impacto da recessão nas contas públicas: o Orçamento deste ano, que originalmente contava com R$ 805 bilhões, já sofreu uma redução na casa dos R$ 60 bilhões. Dados prestes a serem divulgados pela Receita Federal indicam nova queda na arrecadação tributária federal no mês de julho.
Reportagem de MARIA CLARA CABRAL, Colaborou ANGELA PINHO na Folha de São Paulo de 20/08/09
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
Cancer de pênis
Câncer do pênis, circuncisão e câncer do colo do útero
sábado, 15 de agosto de 2009
Menor tributo sobre alimentos
Na verdade, por trás do problema estão mesmo interesses muito distintos: tributos federais, estaduais e municipais compõem uma intrincada malha cuja modificação pode diminuir a arrecadação de uma ou mais daquelas instâncias. Como temos eleição a cada dois anos, ora candidatos a prefeito, ora a governador, ora para os diferentes Parlamentos, colocam resistência a uma reforma que possa eventualmente provocar algum desequilíbrio aos respectivos Tesouros.
Mas não é possível continuar com a atual carga tributária, que, em 2008, correspondeu a 35,8% do nosso PIB. Tamanha carga inibe investimentos e perturba o desenvolvimento. Ciente disso, recentemente o governo federal reduziu o IPI para a venda de automóveis, garantindo a continuidade do desempenho do setor, mesmo em tempos de crise.
Por outro lado, impostos muito elevados estimulam a sonegação. Quando governava São Paulo, Geraldo Alckmin reduziu de 25% para 12% o ICMS sobre o etanol; como resultado, a arrecadação cresceu e a sonegação diminuiu. É evidente, como regra geral, que impostos menores estimulam investimentos produtivos e desestimulam os sonegadores. Mas, no caso dos alimentos, há um dado adicional. Recentes estudos realizados pelo Departamento do Agronegócio da Fiesp, em parceria com a FGV, mostram que as famílias de menor renda (até R$ 2.000/mês), que representam 71% da população brasileira, gastam quase 20% de seus salários com alimentação.
A carga tributária brasileira sobre alimentos é uma das maiores do mundo, com média de 16,9%, enquanto na Europa é de 5,1%, e, nos Estados Unidos, menor que 1%. Desse modo, fica claro que a desoneração do PIS/Cofins da cesta básica e das carnes tem um efeito direto na melhoria da distribuição de renda no país. E, para mexer nele, não precisa haver disputa com governos estaduais e municipais, porque PIS/ Cofins é tributação exclusivamente federal.
No ano passado, estima-se que a arrecadação desses tributos sobre os produtos referidos (açúcar, arroz, biscoitos, café, carnes, farinha, feijão, frango, leite, macarrão, margarina, óleo de soja e pães) tenha sido de R$ 3,6 bilhões. O estudo mostra que, se todas as famílias deixarem de pagar essas contribuições, haverá um extraordinário efeito em cascata na economia, porque irão consumir mais alimentos e outros produtos, o que levará a um crescimento de 1,7% do PIB em até três anos. Como se explica isso?
Simples: o aumento da demanda sobre bens de consumo em geral exige aumento de sua produção. Isso gera investimentos, empregos e mais renda em diferentes setores (alimentos, vestuário, eletrodomésticos, móveis e utensílios), levando ao referido crescimento do PIB. São números importantes e de resultado tão direto sobre a renda das famílias quanto o próprio Bolsa Família. E, com custos menores, podem até mesmo ser um elemento para reduzir tais gastos no futuro.
Texto de ROBERTO RODRIGUES, 66, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula).
Na Folha de São Paulo de 15/08/09
O DNA da apatia
"O seu mandato [de Marina Silva] pertence ao povo do Acre e também ao PT", escreveu Dirceu em seu blog. A ameaça foi logo debelada pelo Palácio do Planalto e por petistas em geral. Depois de dezenas de escândalos engavetados, seria devastador para a imagem do PT perseguir Marina Silva.
Para a senadora pelo Acre, talvez fosse até um favor. Ganharia publicidade gratuita como a única cassada no lodaçal do Congresso.
Mas tudo parece ter sido mesmo uma ideia sem conexão com a realidade. No atual momento pelo qual passa o Poder Legislativo, só um fato muito inaudito resultará na punição de algum deputado ou senador. Por ora, estão todos salvos.
Embora o foco agora seja o Senado, não custa lembrar das estripulias na Câmara. Lá, já está tudo abafado. Usou-se até parecer jurídico pago com dinheiro público na absolvição do deputado que levou a namorada ao exterior.
Essa impunidade generalizada parece ter conexão com o momento pelo qual passa o país. A economia não foi para o buraco. Milhões de brasileiros recebem o Bolsa Família. A sensação de bem-estar produzida leva os cidadãos a pensar mais no próximo crediário nas Casas Bahia e menos em protestar contra a canalhice na política.
Num país miserável, não é surpresa a barriga vir na frente da ética e da moral quando se trata de escolher entre ganhar a vida e preocupar-se com políticos indecentes.
Nesta semana, o PSOL fez um protesto anti-Sarney. Apareceram menos de 30 gatos pingados. Faltou povo. Como escreveu ontem Clóvis Rossi, pouco ou nada acontecerá enquanto a maioria achar que basta mandar e-mails desaforados para os congressistas.
De Fernando Rodrigues na Folha de São Paulo de 15/08/09